O Paradoxo de Galelli

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“Não preciso fazer muito esforço para me afogar na água ilógica”, diz a mocinha deste escafandro, e do bolso tira um livro: Cabeça de José  (Nave, 2014). Pego-o nas mãos; está incrivelmente seco, intacto, e já vem com marca-páginas, indicativo de que será aberto e fechado e retomado inúmeras vezes antes de sua total compreensão, mesmo sendo relativamente curto.

Aí está: um livro que é uma provocação que é um rio que é um alento que é uma porrada que é uma mágica que é um mergulho que é um suspiro que é um objeto de arte e de contemplação que é um encontro com os rios e os risos e as rachaduras do “real”, e que resolve em parte, pela aura mágica & fantasiosa, a sedução sombria, sanguinolenta de Carne Falsa (Editora da Casa, 2013), o primeiro livro da autora.

Patrícia Galelli, 26, é uma catarinense de cabeça complexa, afogada plenamente em água ilógica, em boemia, em vida artística e cultural de Florianópolis (SC) desde que saiu de sua fria e saborosa Concórdia – não de vez, porque ali também sempre pode voltar para a comida da mamãe, ainda bem.

Nascido de um processo de escrita a jato, durante o último verão, o enigmático Cabeça de José (Nave, 2014) é dos mais bonitos e complexos lançamentos editoriais dos últimos tempos entre a nova geração de escritores catarinenses, com as ilustrações e design de Yannet Briggiler.

Acaba de sair da gráfica e do bolso do escafandro de Patrícia. Nessas suas primeiras semanas de recepção aqui no Planeta Terra, decidimos registrar o momento com essa breve entrevista com a autora –  em que, mais do que explicar o livro, ela nos convida a navegar com o narrador da história de José, curtindo a viagem com um barco em cada pé.

por KATHERINE FUNKE

Ultralits – (Tua) “Cabeça de José” critica a normalidade aparente, o chimarrão cotidiano, os clichês, as conversas de vizinhos, a exatidão do registro burocrático. Neste contexto, pergunto: de onde veio a inspiração – ou a necessidade – de escrever esta história e já publicá-la, exatamente um ano depois de “Carne falsa”?
Patrícia Galelli – Não sei se veio de alguma inspiração, mas com certeza veio da frustração de não ter sido astronauta ou neurocientista. O processo de criação do livro foi realmente rápido. Eu tinha algumas ideias que rondavam o título “Cabeça de José” e, nesse meio tempo, conheci melhor a Yannet numa conversa de bar e, dessa primeira troca de ideias, fiz três pequenas narrativas que ela ilustrou. Com esse material, o projeto de livro acabou contemplado pelo edital Elisabete Anderle 2013, viabilizando a publicação. Escrevi o livro nas férias de 2014, em fevereiro, e o lançamento foi logo depois, em agosto. Acho que foi um processo fast-book.


Desde quando (percebeste que) caminhas / navegas em águas ilógicas de rio sem sentido? Ou isso só acontece com teu personagem José, hã? Conte um pouco dessas descobertas, que são ao mesmo tempo ontológicas e humanistas…
Sinceramente, acho que sou um pouco perturbada com a vida, com essa coisa insana que é existir. Atrelada a isso, uma incapacidade de análise e de entendimento a respeito sempre me esmaga – e não, não faço terapia, e não faria, porque tenho a sensação que nunca mais conseguiria me livrar do tédio (eu ficaria olhando para o terapeuta por horas sem falar absolutamente nada). Tenho sinceras dificuldades com a ditadura da alegria, da beleza e da virtude – acho tudo uma balela sem tamanho, embora haja, como uma montanha-russa, as subidas e descidas e curvas perigosas dos momentos de riso e depois de leveza, pós-tensão. Como você pode perceber, não preciso fazer muito esforço para me afogar na água ilógica.

Teu livro saiu com prefácio de Luiz Bras. O que isso significou pra ti?
Luiz Bras é das pessoas mais amáveis que conheci. O prefácio dele em Cabeça de José foi muito generoso, reflexo do que ele é, assim, o tempo todo. Mas, apesar de ter adorado o texto, o contato com ele, e também com Tereza, é o que mais significou para mim – sou grata pelas trocas de informações, pela atenção que ele teve comigo e com o José ainda no processo de escrita do livro e pelos comentários importantíssimos que ele fez, antes, sobre o Carne falsa.


Alegrou-me muito ver a tradução para o espanhol, anexada ao final da narrativa, aproximando os hermanos da “cabeza de José”. Pretendes viajar com o livro – Uruguai, Argentina, algo assim?

Gostei muito da tradução para o espanhol, feita pela Eleonora Frenkel, acho que ela conseguiu passar todo o clima espacial e as intenções de ironia do livro. Se pudesse viajar pelas nações vizinhas, minha mochila já estaria à mão. Mas não é tão simples sair por aí, com o livro debaixo do braço, tendo um emprego formal. Ainda estamos, Yannet e eu, estudando as possibilidades para lançar na Argentina, país dela, e no Uruguai. De qualquer forma, o livro já circula por esses dois países em algumas livrarias, bibliotecas e instituições culturais.


Selecionado pelo Edital Elisabete Anderle, do governo do Estado de Santa Catarina, o livro ficou lindíssimo, com as ilustrações e o projeto gráfico de Yannet Briggiler, e a edição da Nave, um objeto de contemplação quase artesanal – pelo duplo da capa e sobrecapa, coladas e sem orelha. Pode contar mais de como foi esse processo – do texto ao livro?
O processo da narrativa escrita e da narrativa visual foi construído meio que simultaneamente. Tanto que as ilustrações não são representações do texto. Elas também questionam, perturbam, permitem outras leituras. Creio que nos permitimos, Yannet e eu, sentir uma com a outra esse universo de Paradoxo, a ilógica, a falta de senso, a espacialidade que tem no livro – como forma de suspensão, de não-pertencimento. Isso se deu também com o projeto gráfico, não foi involuntário. Foi, antes, bastante refletido, quadro a quadro, quase como uma brincadeira de cinema estático.


Fica claro que Discórdia é uma alusão a Concórdia, tua terra natal. O livro também foi lançado lá. Que sensação te deu voltar lá para 
lançar “Cabeça de José”, um livro ao mesmo tempo mais lúdico e mais maduro do que “carne falsa”, e ainda mais abertamente livre, contracultural, ácido e lisérgico?
Voltei para Floripa, depois de lançar o livro lá, estufada de afeto (e um pouco mais gorda, por causa da comida da mãe). Tenho algumas crises com – lá eu passo frio até na primavera e a água ilógica me faz tomar alguns caldos – , mas faço sempre questão de voltar, de rever as pessoas, de conversar. É um carinho diferente, um carinho de cúmplice, que recebo. Então, acho que posso dizer que ter ido a Concórdia com o José foi mais ou menos como ter aprontado alguma coisa fora de casa e ter passado ilesa, sem levar bronca nenhuma – acho até que já deixei esquematizados a fuga e o esconderijo se essa minha “travessura” der muito errado.


“José não tem sobrenome, é um cidadão com outras preocupações.” Só esta pequena frase já soa como uma grande paulada na cara da tradição (família, instituições, propriedades), mas contra ela já fala também toda a linguagem escolhida, “fora do mundo, bagunçando sem parar a direção da correnteza dos rios”. Quando tens de falar no teu cotidiano com(o) as pessoas de “cabeça exata” , no seu trabalho pragmático de jornalista pós-graduada em Administração de Empresas pela FGV, como é que fica tua cabeça? (Não quero te mandar para o analista, só quero entender um pouco de como administra as coisas aí dentro, afinal às vezes por aqui também passo por paradoxos semelhantes).
Se o analista que você citou tivesse poderes telepáticos, eu toparia ir, porque a pergunta é complexa. Seria mais fácil se alguém entrasse na minha cabeça, reorganizasse os pensamentos e respondesse isso. Mas bem, na maioria das vezes tenho breves colapsos nervosos com os “baratinhos” da burocracia e com a importância dada a coisas sem importância que empacam o desfecho do que realmente importa (hehe). Aí posso mapear o processo do que ocorre comigo, resumidamente, assim: i) “emputecimento”, com cenas fortes – tipo “meu mundo caiu”; ii) reclamações irônicas em voz alta; iii) minuto de silêncio iv) constatação imediata de que estou sendo idiota; v) respiração profunda; vi) emissão de desafio para o sistema nervoso central, com o alerta: “acalme-se, acalme-se, acalme-se!”; vii) outro minuto de silêncio e viii) volta à noção básica de que tem coisa mais importante pra me chatear na vida.


Se pudesses escrever uma resenha sobre teu próprio livro, o que não deixaria de dizer?
Acho que daria um spoiler: diria que, para lidar com a correnteza dos rios da cabeça de José, é melhor seguir a ideia do narrador e calçar um barco em cada pé.

esta entrevista foi publicada originalmente em 12/nov/2014, na revista Ultralits

o jogo do Selo Jota (e mais, em entrevista com Noemi Jaffe)

NOEMI JAFFE é uma escritora experiente e sempre original que, como um gato, adora investigar um novelo (um tema, um clima, um absurdo) com inteligência e mistério; ela desafia a lógica (dominante) com argumentos às vezes paradoxais mas absolutamente defensáveis, com frases bem construídas que saltam do papel ou da tela e nos olham direto nos olhos sorrindo: frases hipnóticas como o olhar da própria Noemi nas suas raras fotos de divulgação.

Em seus livros, artigos, postagens de blog e Facebook (da qual é usuária assumida, sem medo de ser feliz), Noemi parte sempre do que há de mais palpável e concreto para, numa fração de segundo, subir no telhado, ou ter a coragem de certos gestos de provocação a mais.

Então, era de se esperar mesmo que demonstrasse ainda mais saúde para as complexidades do humor quando coordenasse um selo literário. Para o Selo Jota, parte do catálago da editora E-Galáxia, Jaffe recorreu aos deuses do Oulipo: Ítalo Calvino, Raymond Queneau e Georges Perec.

O que isso quer dizer? Que as narrativas do Selo Jota da editora e-galáxia têm em um comum algumas “restrições” ou “limitações formais” prévias inspiradas claramente nas propostas franceses do grupo Oulipo.

Ou seja, o autor tem de assumir o próprio texto como um jogo, o que já muda toda a lógica criativa. Para O capricórnio se aproxima (2014), o primeiro título do selo, quatro regras foram estabelecidas:

AS REGRAS DO JOGO

É expressamente proibido o uso de adjetivos;

É obrigatório o uso de todas as letras do alfabeto em cada um dos capítulos, incluindo K, W e Y. As repetições não serão consideradas;

É obrigatório o uso de pelo menos um numeral em cada capítulo;

Cada capítulo poderá ter no máximo 500 palavras.

Títulos de autores do grupo Oulipo serão diretamente homenageados nesse processo. Já de saída, o livro criado por Flávio Cafiero se espelha em Zazie no Metrô, de Queneau. Lá estão, também, pessoas se movimentando pelo trânsito caótico de uma grande cidade esquizofrênica, que não é Paris, mas Rio de Janeiro. A trama de O capricórnio se aproxima reúne personagens descobrindo/encobrindo sua homossexualidade, saindo/ficando em suas famílias, enxergando o mundo de novo (ou para sempre) como uma criança capeta, zombeteira, capaz de desconstruir uma mentira daquelas que os adultos contam “por precaução” e, mesmo sabedora da verdade, não revelá-la jamais, de um modo ao mesmo tempo precavido, atrevido e sapeca.

Cafiero inventa um sistema bem bolado de códigos apresentados como “lendas” na família do protagonista (como chamar puteiro de planetário, por exemplo). E aproveita as regras estabelecidas por Noemi para escrever em ritmo rápido, com uma musicalidade própria e uma diversidade ampla de referências pouco encontrada em uma novela curta como esta.

Exemplo: o autor batiza uma rua com o nome de Stefan Zweig, o que talvez não acontecesse em uma novela curta se não fosse a regra de utilizar todas as letras do alfabeto, incluindo o W, em todos os capítulos.

Aos olhos dos leitores, especialmente para os que conhecem o romance de Queneau, fica a impressão saudável de uma partida muito bem jogada. Cafeiro atinge a meta máxima de Noemi: promove um salto inteligente por cima das mornidões interiores entediantes. É o pulo do gato, direto para o novelo de lã.

E o que Noemi tem a dizer sobre o caso? Entrevistei a autora no final do ano passado, e lá vão as respostas, que permaneceram inéditas até esta postagem.

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Como se configurou a ideia de Jota e o que podemos esperar da coleção?
A ideia começou porque escrevi um livro para a “e-galáxia”, o “comum de dois” e, a partir disso, os editores, Tiago Ferro e Mika Matsuzaki, duas pessoas muito dedicadas, talentosas e pioneiras, me convidaram a criar um selo. Sabem que eu tenho acesso a vários novos talentos, porque dou várias oficinas de Escrita Criativa há muitos anos e acabo conhecendo pessoas que não têm acesso direto ao mercado. Em função disso, comecei a convidar alguns alunos e ex-alunos a escrever livros cujo formato acredito funcionar para esta mídia eletrônica: livros mais breves, com textos mais dinâmicos. Surgiu essa ideia dos desafios, que é uma técnica que uso muito nas minhas oficinas e que potencializa muito a escrita. O que se pode esperar são textos bem particulares, com linguagem mais experimental, sem que isso signifique hermetismo.

Vamos falar um pouco das regras do jogo: proibido o uso de adjetivos; capítulos curtos, de no máximo 500 palavras; e, em todos os capítulos, usar numerais (pelo menos um) e todas as letras do alfabeto, incluindo as minorias (K, W e Y). Explique um pouco a razão dessas definições. Não são tão radicais, mas tampouco simples de serem cumpridas…
Essas são as regras definidas apenas para o primeiro livro da coleção, do Flavio Cafiero, livro que já foi lançado. Para o Samir Mesquita, o próximo autor, as regras são outras, assim como para a Ana Estaregui, a terceira autora da coleção. Para cada novo autor, novas regras. Nunca fáceis, mas, como você disse, também não difíceis demais. Não há propriamente uma razão para as restrições. O autor é que é obrigado a encontrar uma razão para elas, a partir do que eles escreve. A ideia é justamente essa: fazer com que as regras, a princípio arbitrárias, ganhem uma razão de ser.

apresentação de Noemi Jaffe para o livro O capricórnio se aproxima
apresentação de Noemi Jaffe para o livro O capricórnio se aproxima

O capricórnio se aproxima tem um início muito ritmado e bom, e me lembrou um pouco clima de Zazie no Metrô, de Raymond Queneau. Em que medida a comparação (natural) com autores do grupo Oulipo preocupa vocês, e o que buscam como resposta inovadora?
Isto não me preocupa em absoluto. Tudo o que se produz, em literatura e também nas outras artes, é baseado em algo que já se fez. Entre esta proposta e a do Oulipo, há semelhanças e, é claro, diferenças, relacionadas, à época, ao lugar e às individualidades de cada escritor e autor. Ideias não são propriedades. O que é propriedade é o que se faz com aquela ideia.

O que podemos esperar dos próximos livros?
No livro do Samir, eu o desafiei a contar uma mesma história simples, a partir de dezenas de pontos de vista diferentes, semelhante ao que fez Queneau em Exercícios de Estilo. O resultado ficou muito bom. Já para a Ana eu sugeri um personagem com quem ocorrem mínimas mudanças a cada novo capítulo, de tal forma que no último capítulo ele não se pareça em quase nada com o primeiro.

Vamos falar um pouco de seu e-book “comum de dois” (e-galáxia, 2010). Impossível ler sem se identificar com as cenas de casal ali descritas, e não é apenas o formato de diálogo que ajuda, mas também o modo como revelam as angústias contemporâneas – como a ideia de que inferno seria ter controle remoto para tudo e não saber usar nenhum. Contudo, você faz isso com muita simplicidade (nem de longe é um livro difícil de ler). Como é que foi a estratégia de produção deste livro? Ou – sei lá – não teve estratégia alguma?
Há algum tempo que mantenho um blog em que escrevo pequenas crônicas do cotidiano, e faço isso também no facebook, além de praticar algo semelhante com meus alunos. Gosto muito de ouvir os diálogos na rua, tentar capturar os trejeitos, as manias linguísticas, as idiossincrasias. Acho que isso constitui grande parte da forma como as pessoas pensam e se localizam na cidade e no mundo. Procurei passar isso, de alguma forma. Diálogos comuns de um casal comum.

Você tem um outro livro que também se vale de diálogos – Todas as coisas pequenas– e que é bem diferente. Alías, você já leu esse comentário de uma leitora sua no Skoob? O que diria para ela?

Viajei legal

Lição número 1, nunca acredite que um autor que lhe fez dar 5 estrelas em uma de suas obras, vai fazer as mesmas estrelinhas brilharem… e aja balde de água gelada na minha expectativa.

Vamos lá, esse livro não é ruim, mas não consegui assimilar todas as informações que ele realmente pretendia passar. Não sou do tipo “filosófica”, e muito menos consigo compreender todo o blá-blá-blá Freudiano ou afins. Sou do tipo de pessoa que lê coisas simples e claras e se começar a “complicar”, minhas ideias surtam e começam a “pipocar”. Infelizmente foi isso que aconteceu comigo ao ler esse livro, que também segue a linha de diálogos do livro Comum de Dois só que desta vez, entre coisas, pessoas, animais, Deus e e.t.c… Pensa numa cabeça louca? Pois bem, foi a minha e no final das contas, tive uma tremenda crise de riso incontrolável. Acho que pelo menos pra isso me serviu… sorrir! 3 estrelas está de bom tamanho para minha “ignorância” filosófica.

O livro “ Todas as coisas pequenas” não é um livro de crônicas. É um livro de poemas, em que o trabalho com a linguagem é bem mais denso, comprometido e particular. Não pretendi, como no “ comum de dois”, criar algo “palatável”, em que as pessoas se reconhecessem com facilidade. Os diálogos com Deus são problemas poéticos e ontológicos, com um alcance que eu espero maior. São nós, paradoxos pessoais, como pensar em não acreditar, mas temer ser punida por isso.

Adoro seu blog “quando nada está acontecendo”, e você também gosta muito, pois o alimenta várias vezes por semana. Embora seja muito livre, pois é um espaço independente e autogestionado, você jamais publica textos sem valor literário. Quais os desafios que este blog te apresenta, como autora?
Adoro o blog também. Lá me sinto livre e, ao mesmo tempo, sei que há pessoas que o lêem. Escrevo, protesto, pesquiso linguagens, palavras, faço o que quero. O desafio, muitas vezes, é como transformar uma pequena iluminação em um texto que tenha valor literário. Como dizer muito com pouco?

Foi muito corajoso seu artigo “Teimosa humanidade” (FSP, 24/04/2014), apontando a fragilidade das assertivas de Luiz Felipe Pondé. Quais foram as repercussões mais bacanas dessas suas iniciativas, até agora?
No artigo sobre o Pondé houve repercussão positiva e negativa (fui muito criticada por um colunista da Veja). Gostei das duas, porque acho que são significativas sobre quem as produz. Aprendi bastante e ainda aprendo com esse tipo de posicionamento, pois muitas vezes me considero precipitada, outras vezes, ao contrário, atrasada. É um jogo do qual quero fazer parte, embora não seja algo fácil, nem em termos de escrita e tampouco em termos políticos. Não critico quem não quer se envolver, de forma alguma. Muitas vezes, eu mesma prefiro silenciar. O silêncio também pode ser uma ferramenta bem ativa.

entrevista de Noemi Jaffe para Katherine Funke
em dezembro / 2014. publicada em abril / 2015.

novas entrevistas de investigação

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Dois anos atrás, por causa do nascimento do meu filho, deixei de publicar as “Entrevistas de investigação” – estas breves sabatinas realizadas com autores de livros que me deixavam sem fôlego e com vontade de que a história continuasse indefinidamente.

Agora que meu filhote deixou de usar fraldas, decidi retomar as entrevistas. Mas, puxa vida, é também porque tive um forte motivo: a sensação deixada em mim após a leitura de dois lançamentos recentes de autores catarinenses.

Um deles foi o romance “As fantasias eletivas”, de Carlos Henrique Schroeder. É uma história breve, fragmentada e, talvez por isso mesmo envolta em uma aura envolvente de silêncio e solidão. Por causa dela, e de um outro título que revelarei nos próximos dias, continuarei a “provocar” escritores, ilustradores e editores com algumas perguntas.

A diferença é que agora essas entrevistas serão publicadas no Ultralits, blog literário independente editado por mim e pelo brother Patrick Brock, jornalista, escritor e tradutor brasileiro-americano (ele é panamericano!) residente em Nova Iorque.

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Confira a entrevista com Carlos Henrique Schroeder no Ultralits.

se existe céu, então é isso / entrevista de investigação #6: davi boaventura

O impulso original desta série de entrevistas foi perceber que alguns livros podem pedir para ser devorados de uma só vez. Mais que isso: apesar de caberem em um só acesso de leitura compulsiva (que pode durar duas, três noites, a depender do tempo disponível), nos levam a outro universo e deixam-nos inebriados por dias, semanas, meses, anos – voltam como flashback ou antecipam cenas da vida, e se você é doido por literatura como eu, certamente sabe do que estou falando.

Atenta a esses princípios, não dá para deixar de registrar o lançamento de talvez não tenha criança no céu, de Davi Boaventura.

Se este fosse um blog noticioso, eu teria muitos motivos para falar deste livro: o fato do autor ser o único baiano lançado pela editora Livros de Safra, por exemplo, e do seu material ter recebido um tratamento extremamente caprichado da editora.

(O design está sensacional, especialmente a capa com a ilustração de Matheus Frey, que também assina as ilustras do miolo.)

Minha curiosidade aumentou quando descobri que Davi Boaventura constituía um mistério: está muito próximo de mim e eu não o conhecia. Moramos no mesmo bairro – eu passo perto da casa dele muitas vezes por semana – e já trabalhamos na mesma empresa (embora eu não me lembrasse disso; ele me avivou a memória: trabalhamos em cantos opostos da redação do jornal A Tarde, aqui em Salvador).

Outra razão para falar de talvez não tenha criança no céu poderia ser a frase de Daniel Galera na contracapa, que me chamou atenção imediata no dia em que tomei conhecimento do livro (porque, como Boaventura, admiro deveras a literatura de Galera): “Um relato sufocante dos estertores de uma adolescência sem rumo”.

Some-se a tudo isso o sucesso do lançamento: 150 livros vendidos em noventa minutos de lotação da Livraria Cultura de Salvador, contou Davi…

Mas o que dá mesmo sentido à presença dessa investigação aqui no blog é o seguinte: eis um desses romances que pegam de jeito; você começa, não consegue fazer outra coisa antes de terminar. Como um bom blues, é uma prosa que rola fácil, mas às vezes provoca riso, dor, melancolia ou outro desses sentimentos terríveis. Para ser um bom blues, precisa ser bem tocado, e esas é a parte mais bacana do livro: é muito, mas muito bem escrito.

Logicamente, para ter essa sensação, o leitor também precisa ter alguma identificação com o microcosmos do romance. Eu tenho; ou melhor, tive, na minha adolescência, e na verdade não gostaria de deixar de ter, posto que acredito que certo grau de loucura adolescente e a constante dúvida de que exista céu devam fazer parte da nossa vida para sempre.

O protagonista do livro – um rapaz em fim de férias, sem saber o que quer da vida, sem saber nem mesmo se vai fazer vestibular no fim do ano, entre festas, meninas, dramas alheios e os próprios – nos é apresentado na primeira pessoa. O narrador, contudo, já está alguns anos mais velho. Não muito, mas a ponto de fornecer a si mesmo uma versão clara de seus sentimentos e do que ocorria.

Eu não era feliz, nunca fui, nem queria ser, na minha cabeça confusa e contraditória eu simplesmente esperava ser um pequeno pedaço de vácuo sem ter a obrigação de pedir desculpas por essa ofensa. Luísa, durante uma tarde deprimente de nosso microrrelacionamento, me avisou: este momento ia chegar, era inevitável diante da minha insistência em rejeitar o curso natural das coisas e diante da minha predisposição para o fracasso. Lembro bem, ela no meu quarto, irritada, arrumando a bolsa, queria ir embora depressa depois de nós termos brigado e antes de bater a porta, ela me avisou: que eu podia ter a certeza que meus pais, meus amigos, meus professores, eu me preparasse porque eles um dia iriam me considerar doente e do pior tipo: aquele que não quer se curar.

As frases longas, dramáticas – algumas cortadas por pontos mas ainda assim unidas pelo ritmo – sufocam pela densidade existencial. Ao mesmo tempo, a naturalidade com que incluem a fala coloquial da região metropolitana de Salvador para o texto (usando expressões como “porraniuma”, por exemplo) produz um efeito de companheirismo entre o narrador-protagonista e seus pares na história, o que ajuda na sensação de verdade/de realismo que um universo ficcional precisa para convencer.

Além do domínio da ficção, Davi Boaventura demonstrou ter fôlego nas últimas semanas: respondeu talvez uma dúzia de entrevistas, duas, três, ou mais… Publico a nossa com uma simultânea sensação de felicidade pelo novo vizinho escritor que ganhei – e pela admiração que me cabe ter a uma peça literária de alta qualidade dessa natureza.

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Katherine Funke – Você conhece A Banda do Companheiro Mágico, de Antonio Risério, ou outros romances/novelas juvenis autores baianos? Como seu livro se situa neste contexto local – ou você não se preocupa com isso?
Davi Boaventura – Ainda não conheço. Vergonha em admitir, mas minha influência na literatura é muito anglófila. Não é falta de interesse, veja bem, muitas vezes é falta de acesso ou simplesmente dificuldade de conhecer os trabalhos mesmo, você bem sabe como divulgação de literatura na Bahia é um processo complicado – a começar pelos porteiros-seguranças-de-filme-de-James-Bond… Bem, dos que eu conheço, apesar dos textos deles irem mais para o lado infantil, posso falar com prazer de Breno Fernandes e Saulo Dourado, que são dois jovens como eu, mas que já escrevem há bem mais tempo, de certa forma conhecer os dois me fez acreditar que escrever livro na Bahia não é o apocalipse, embora passe perto. No contexto local, eu sinceramente nunca pensei em termos de “ah, quero que meu livro se coloque em tal lugar”. Eu só tentei escrever o melhor que eu podia escrever dentro de minhas capacidades e habilidades.

KF – Moramos no mesmo bairro, então não pude deixar de notar referências geográficas reais. Sua casa, mesmo, fica perto da portaria de Vilas do Atlântico, um pórtico em forma de arco, descrito no livro como cenário próximo da residência do personagem. Trata-se do único detalhe autobiográfico da trama, ou tem mais? Qual foi sua intenção ao incluir a geografia do lugar onde você mora na história?
DV – Eu usei as referências geográficas e alguns detalhes autobiográficos para rechear o universo, dar mais consistência. Eles me ajudaram a enxergar melhor os personagens, em especial.Mas passa longe de ser autobiográfico. Teve repórter tentando forçar uma relação autobiográfica, o que me deixou até frustrado, como se não fosse possível falar de um ambiente real sem falar da própria vida. A ideia nunca foi ser uma obra “local”, porém. Tanto que apaguei os nomes dos lugares e, em determinado momento, cheguei a pedir para que a divulgação nem enfocasse esse aspecto. Mas, no final, a referência acabou sendo um chamariz forte, pelo menos na imprensa daqui. O [jornal] Correio mesmo fez uma edição fabulosa – na página da esquerda, tem um cantor, também morador de Vilas, falando que a música dele é praieira, a partir do alto astral do bairro; do lado direito, eu apareço falando que nunca me adaptei totalmente ao lugar e que é uma rotina vazia. Eu não consegui parar de rir, para você ver como o bairro é uma situação complexa.

KF – O escritor Daniel Galera, que assina a frase da contracapa, também enviou comentários críticos bem pontuais sobre o livro. O que ele disse e o que, dessa análise, serviu para a evolução da obra em questão e também da sua formação como escritor?
DV – O Galera focou bem a questão da técnica, pediu para atenuar um pouco as cenas de bebida e descontrole, para dar um equilíbrio maior ao texto, foi muito mais detalhista do que eu esperava. Aliás, eu nem esperava. Porque minha editora não me avisou nada, só me enviou o texto dele e me deixou ficar em choque. Mas foi fabuloso. Eu passei meses lendo e relendo Até o Dia em que o Cão Morreu e vivia dizendo para minha namorada que, se meu livro tivesse 10% da alma que aquele livro tem, eu ficaria satisfeito. Então imagine… Mandei um e-mail agradecendo e ele foi gentil ao extremo em responder, falou que torcia bastante pelo livro e tudo, que um dia até pegava meu autógrafo – lógico que aí é a parte da gentileza, mas imprimi a página por via das dúvidas…

KF – E o que você está lendo agora?
DV – Rapaz, eu estou lutando para terminar Ulysses. Mas outros estão atravessando. Estou para começar Vício Inerente, do Pychon, e quase terminando Junkie, do William Burroughs. Aí eu enfrento os 13 que me esperam na estante…

KF – Ulysses se passa em apenas um dia, e é mais ou menos o caso do seu livro – claro que as comparações param para por aí. Ou não? …
DV – Param, param. Tá doido, tenho aquela capacidade toda, não.

KF – Lê-se rápido seu livro, e no fim ele se passa mesmo em um tempo cronológico curto – um dia, dois, na vida dos personagens. A sensação de texto fluente, bem contado, vem de um esforço seu: você demorou anos para escrever e lapidar o texto final – mais ou menos oito anos, não foi isso? (Foi também o que aconteceu com Ulysses, escrito entre 1914 e 1922…). Nesse processo, o que foi mudando na forma /no estilo do texto e mesmo na sua forma de conceber o livro?
DV – Mudou igual cabelo da Elke Maravilha. Nestes oito anos, o único capítulo que passou quase sem retoque estrutural grande foi o primeiro, mas no começo ele era o segundo. Era um texto um bocado imaturo, cheio de “manifestos”, porque era uma coisa de descarregar mesmo. Alguns diálogos tinham falas de dezoito linhas, meio Fidel Castro discursando. Depois da minha primeira versão, meu objetivo sempre foi limpar o texto, eliminar tudo que fosse inútil e deixar o livro o mais ágil possível, que o leitor pudesse ler rápido, respirando pouco, e que, se tudo der certo, ele possa ter uma diversão com algum conteúdo – acho que o maior problema de literatura jovem (veja que nem gosto do termo juvenil) é que o sujeito é muito subestimado e a maioria cai em uma dicotomia, ou é divertido, mas fútil, ou é inteligente e inacessível; eu tento superar justamente isso, espero ter conseguido. Os amigos também ajudaram bastante, vários comentários foram inclusos no texto a partir das falas deles. E o título me ajudou bastante a entender o produto como um livro. Antes me parecia um pouco brincadeira, meu primeiro título mesmo lembrava paródia de livro policial.

KF – Você usa frases bem longas, às vezes, para passar ideias ágeis, encadeando ações, sensações e referências comuns a adolescentes (O Apanhador no Campo de Centeio entre elas), e certa ousadia nas cenas de sexo, drogas e rock’n’roll. O que a idade do narrador no ato de contar a história (já aos 20 anos, relembrando seus tempos de guri), e a sua própria idade e experiência, tem a ver com o ritmo e o tom que você adotou?
DV – O ritmo ágil sempre foi um dos pontos mais centrais para mim, acho que ouvi Nirvana demais nos últimos anos… A questão é que eu queria um texto o mais verdadeiro possível, que o jovem possa se identificar, mas que, principalmente, eu acreditasse. Eu, por exemplo, não me identifico com esta moda da fantasia. Leio, assisto todos os filmes, Jogos Vorazes mesmo é um espetáculo, mas a maioria é escapismo – meu narrador fala bastante em fuga, mas o que ele quer mesmo é existir, isso eu não encontro em Crepúsculo. Sobre a idade, ela me ajudou a entender melhor o que eu tinha nas mãos, a limpar os excessos. Mas o “eu” de dezoito anos ainda é dominante ali, pelo menos no sentimento da obra.

KF – Você esteve recentemente com Franca Treur, autora holandesa cujo Confetes na Eira vendeu 150 mil cópias no país dela, e aqui no Brasil foi lançado também pela Livros de Safra. Em que situação vocês se encontram, e sobre o que conversaram?
DV – A Franca veio descansar em Salvador, depois de participar da Flipoços, além de eventos em São Paulo e no Rio. Foi bastante interessante porque a visão do mercado literário dela é bem diferente da nossa, a dimensão é muito maior. As conversas foram de todo tipo, ela é muito boa de papo, tivemos até recital de Nietzsche em holandês, na voz radiofônica de Saulo Dourado. Particularmente, fiquei curioso em perguntar sobre as questões religiosas dela, porque ela veio de uma comunidade muito fechada, o oposto do que a gente imagina para o país, e agora vive em Amsterdã. Percebe-se que ela mudou, mas certa timidez ainda ficou latente.

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p.s.: pessoal, estou entrando na “partolândia”; volto assim que o bebê deixar…  muchas gracias por virem a este blog. valeu! voltem sempre!

na estrada com a lua cheia


fechada pra balanço
danço
na lua cheia

(pois, dizia Leminski,
com ela todas as coisas
são simples)

Caro leitor,
ou Suposto, como diria o Pujol:

valeu por vir até aqui hoje, em busca da entrevista de investigação #6. Ela está quase-quase para sair, mas hoje não. Nem amanhã…

Hoje tem superlua cheia e apesar dos psicólogos garantirem que o fenômeno não nos influencia, eu já me sinto prestes a cometer um ato de desobediência civil: o de passar dias e dias desplugada a partir de hoje, só para renovar o espírito. Sem email, sem Facebook, Twitter, cliques em links após links etc.

Preciso de uns haikais, uns contos, uns papéis preenchidos compulsivamente por mim mesma, letra por letra, linha por linha, até me cansar dessa voz que não me deixa descansar – essa voz que não me mostra que a vida de um escritor só faz sentido pelo próximo texto, aquele que ele ainda não escreveu.

Vou por necessidade, voltarei por prazer. Depois da Lua…

p.s.: a foto deste post foi tirada no quintal da minha casa por Jaime Pena Filho.

sutilezas em vermelho-perigo / entrevista de investigação #5: joão lin

O entrevistado de hoje não é apenas escritor.

O pernambucano João Lin é poeta, ilustrador, quadrinista, cartunista, designer, educador, editor da revista Ragu. Também faz videoarte, intervenção urbana, fotografa. Sintetiza um mundo em uma página, um traço, um haikai. Seus olhos são pequeninos, mas a visão vai longe. Tem algo de mestre zen-budista, outro tanto de agitador político. Perigoso, o moço? Não tanto quanto gostaria. É o que ele mesmo diz…

Como editor e ilustrador, Lin acaba de lançar, com o também múltiplo Christiano Mascaro, a segunda caixa do projeto Ragu Cordel: são doze libretos de literatura de cordel. Mas não aquele cordel de sempre. O projeto tem bastante de subversivo, especialmente para os puristas das linguagens tradicionais. Ele transcende o cordel; conta histórias sem palavras, ou com poesias sem rima, ou muita ação em quadrinhos.

Por aí já se vê como Lin traz perigo à nossa sociedade…

Ragu Cordel torna o cordel uma narrativa contemporânea, onde não existem tantas fronteiras entre gêneros e todos podem ser mesclados com a meta de contar uma boa história. O que se mantém é o aspecto fantástico, aventuroso e às vezes místico dos causos. Futebol no Inferno (José Soares, por Flavão) e O cordelista, o conto e o pistoleiro (Samuca) hão agradar mesmo os mais antigos dos cantadores.

Outros, talvez, causem mais estranheza.

Na caixinha de finalização caprichada, por exemplo, dá para ler sem travar a língua em sextilhas ou septilhas. Basta deslizar atentamente o olho pela história criada e desenhada por Mascaro (A Morte do Violeiro): nem uma palavra, umazinha sequer. Pra quê?

Se o cabra insistir que cordel tem de rimar, tudo bem, que rime. Mas, em vez da típica métrica do gênero, toma-se emprestado do século 21 toda a liberdade nos versos, acompanhados de estilosas “quase-xilogravuras”, como fizeram Siba e João Lin em Vale do Jucá:

Mais bacana ainda é que o projeto da Ragu Cordel é um braço da revista Ragu, que já tem oito números lançados (desde a edição zero) em seus doze anos de existência. Editada por Lin e Mascaro, a revista Ragu publica narrativas visuais de diferentes autores, com traços variados e máxima liberdade de expressão. O número mais recente saiu em 2009, em formato livro, com 33 colaboradores, entre brasileiros e convidados estrangeiros, especialmente latino-americanos. O próximo volume, de número oito, ainda não tem data para sair.

Ao ler as histórias de Lin na Ragu, sempre me pergunto: como não ficar intrigada com um trabalho excelente do ponto de vista gráfico, e ao mesmo tempo do poder narrativo?

O fato é que Lin sabe abusar das suas múltiplas habilidades. Na linguagem visual, usa muito vermelho e preto, muito alto constraste, mas também tons pastéis muito sutis e traços finos de nanquim. Abusa do geométrico e do cubismo, paralelamente a quadros soltos nas HQs, sem a formalidade habitual.

Com as palavras, o moço oferece perigo equivalente, ou ainda maior. Cria haikais, outros versos e prosas de grande densidade poética. Até despidas de seus jogos visuais, as histórias que ele cria são sui generis.

Veja o exemplo desta fábula non-sense e existencialista, publicada na Ragu número 3 (2001):

 O consertador de coisas miúdas

Relógios, isqueiros, canetas, chaveiros, caixas de música, rádios portáteis, calculadoras, carrinhos de brinquedo… Quanto menor fosse o objeto, maior sua habilidade para consertar, não importava o tipo nem a origem.

A sua casa era mínima, assim como os objetos que gostava de consertar. Não sabia o motivo do seu prazer em mexer com pequenos mecanismos.

Ver funcionando essas coisinhas o deixava feliz.

Algumas vezes não conseguia resolver os problemas de um objeto, mas na esperança de surgir alguma solução com o passar do tempo, guardava-os nos compartimentos de coisas ainda sem conserto.

Acreditava ser impossível não ter conserto para algo que um dia já funcionou. Por isso não desistia, olhava diariamente para os mais de cem compartimentos de coisas ainda sem conserto. Não tinha pressa, não procurava desesperadamente uma solução.

Para ele, não procurar era o melhor caminho, como uma mágica involuntária, uma iluminação, uma revelação inevitável. Era só uma questão de tempo. Estava envelhecendo, mas isso só aumentava sua habilidade com os pequenos mecanismos.

(…)

Não sabia de onde vinham as tais coisas miúdas. Isso não o preocupava, mas era tomado por uma enorme angústia quando pensava que um dia morreria sem que tivesse o tempo necessário para solucionar centenas de pequenos problemas guardados dentro daqueles compartimentos de coisas ainda sem conserto.”

Captou? Quer mais?

Mesmo que você não conheça nenhuma das edições da revista Ragu, se prestar bem atenção, notará que o trabalho de Lin está por toda parte: em revistas (Bravo!, Tam), jornalões e livros.

Nas livrarias, Lin pode ser encontrado em Domínio Público, projeto em dois volumes do selo Ragu Livro, onde desenhou, por exemplo, um conto de Olavo Bilac sobre o jogo-do-bicho, adaptado para os quadrinhos; está em Ovo, metáfora da trajetória da criação do mundo, publicado pela Livrinho de Papel Finíssimo Editora; está na síntese visual dos “Vestígios” do Rio Guaíba, lançada na Feira do Livro de Porto Alegre de 2011, resultado de um trabalho que misturou videoarte, intervenção e quadrinhos…

E ilustra ou cria capas para livros de outros autores, especialmente de histórias infantis, como Tatiana Belinsky (nas recentes traduções de contos de Krylov, em dois volumes), Luiz Bras e Tereza Yamashita (em A menina vermelha), Flavia Savary, Miguel Sanches Neto (em De pai para filho), entre outros.

Com essa experiência, certamente João Lin tem muito para contar. Então, bóra lá…

*

Katherine Funke – Você tem um trabalho bem autoral: cria histórias, escreve-as em prosa ou poesia, e as desenha com uma grande liberdade formal, sem se prender a escolas específicas. O que vemos parece ser resultado de um processo de erros e acertos, de pesquisa e aprimoramento, de muitos anos. Conte um pouco de sua trajetória, de suas influências, seus mestres, para a gente entender de onde vem tanto domínio sobre essas diferentes formas narrativas…
João Lin – Gosto da expressão “mestre”, ela anda meio em desuso, mas respeito o seu significado. Tive sempre sorte, encontrei muitas pessoas que me revelaram coisas importantes sobre arte, criação, sobre mim e sobre o meu desenho. Tive muitos amigos artistas que foram generosos comigo. Aprendi bastante com mestre Ral que botava a maior fé no meu trabalho, mesmo quando eu acreditava pouco. Ele enxergava coisas que eu não conseguia ver, a exemplo da força da síntese no desenho. Lúcio Mustafá foi outro desenhista e amigo que me instigou e inspirou, juntamente com Roberto da Silva, que era um cara instigadíssimo e estava sempre ligado em 380 volts. Aprendi com minha mãe que foi bordadeira, costureira e sabia colorir com uma certa estranheza e harmonia incomuns, acho que herdei isso dela. (Meu pai era dono de farmácia, assim como meu avô). Outro amigo que me deu várias dicas valiosas foi Mascaro, uma parceria que já tem mais de uma década. Com outros… aprendi vendo/lendo o seu trabalho, como: Zimbres, Millôr, Steinberg, Paul Klee, Sempé, Guazzelli, Mário Valle e por aí vai. Sempre fui eclético e sempre tive dificuldade em me manter num só caminho, sou muito influenciável. Tenho interesses bem diversos e não me incomoda a mácula, a interferência de outros discursos no meu trabalho. Não quer dizer que eu seja assim noutras dimensões da vida [risos], infelizmente. Uma coisa que sempre me instigou foi a ação política (sou de aquário). Comecei a militar nas pastorais católicas, depois no movimento estudantil, no partido e nos movimentos sociais. Comecei desenhando para sindicatos, para o PT, para os movimentos populares… E por ironia do destino também já desenhei para o exército, fiz álbuns seriados, instruções de armas, e coisas assim… Hoje meu trabalho é cada vez mais diversificado, ilustro para literatura para crianças e jovens, mas faço peças mais jornalísticas e tenho desenhado muito para encartes de músicos e bandas. Este é um trabalho que me instiga demais e onde me sinto à vontade para experimentar e trocar figurinhas com o pessoal de música.

KF – Além de autor, você também desenha, edita e faz design para histórias criadas por outros escritores. Qual o maior prazer e a maior dificuldade que você já teve, nessas duas experiências distintas?
JL – Não vejo tanta diferença entre fazer uma HQ que eu criei desde o argumento até o desenho, e uma ilustração a partir de um texto de outro autor. Não do ponto de vista criativo. Considero que ambos me dão as mesmas possibilidades de criação. Alguns limites existirão nos dois casos, como por exemplo: formato do livro, quantidade de cores, quantidade de páginas. Estas coisas não dependem apenas da criação, mas de circunstâncias de produção, portanto não são questões essencialmente criativas. Claro, existem trabalhos que motivam mais, porque o tema te interessa, porque você se sente mais à vontade com ele etc. Essas características não dependem de ser uma encomenda ou de uma decisão, necessariamente, do autor. No caso da encomenda, você tem menos possibilidade de decidir tema/conteúdo, mas também pode optar entre fazer e não fazer tal trabalho, caso ele não te motive ou você não tenha afinidade com o tema. O que eu quero dizer é que todos os trabalhos que eu faço busco me colocar como autor, fazer também o meu discurso. Como artista, o tipo de recurso gráfico, a escolha da elementos simbólicos que uso na ilustração ou HQ já são a minha opinião, já levam o meu olhar de autor. Isso me parece inevitável. Talvez a maior diferença entre estes dois tipos de trabalho é que no trabalho não encomendado você se pauta e você é seu próprio editor. Isso não é necessariamente vantajoso, pois muitas vezes a troca com o editor traz boas reflexões, obriga a dialogar com outras referências, te coloca em movimento. Acho que esse é um exercício importante para qualquer artista. Gosto de discutir com o editor sobre as questões estéticas, políticas, simbólicas do texto. O que não topo é trabalhar com editores que não estejam abertos ao diálogo. Felizmente, tive poucas experiências desse tipo.

KF – Em algumas de suas histórias, o protagonista é alguém com uma tarefa interminável e extremamente lenta e detalhada, como o consertador de coisas miúdas, o pintor que inscrevia as histórias dos habitantes da cidade de Perdão em um muro e o torneiro mecânico que decidiu reativar um engenho velho. Você se sente assim também – um autor com uma tarefa interminável, determinado a cumpri-la, mesmo que não leve a lugar algum? Neste caso, qual é a sua tarefa?
JL – Acho que determinação não é a melhor palavra para dizer da minha instigação para a arte. Talvez, compromisso político, compromisso de classe, já que não se pode mais falar de ódio de classe, e já que também não dá mais pra falar de marxismo. Tenho consciência das minhas intenções no meu fazer artístico, não sou ingênuo e gostaria até de ser mais “perigoso” como diz o amigo e capoeirista Joab. Meus desenhos não parecem ter esse conteúdo político explícito, mas acredito que sutis subversões são o meu jeito de ser político. Subverter, por exemplo, a supervalorização do virtuosismo na arte, que qualifica e hierarquiza, é uma maneira de discutir a elitização no fazer artístico. Numa sociedade que supervaloriza o rigor técnico como valor estético máximo, mesmo sabendo que isso privilegia as classes dominantes, as elites intelectuais e a classe média, porque é esta elite que pode “perder” seu tempo numa escola exercitando exaustivamente a técnica. Por isso, faço uso do meu desconhecimento e minha “limitação técnica” (pois não sou virtuoso) para contestar esta visão elitista de arte. O caminho da síntese, da simplicidade, da economia de recursos gráficos hoje passou a ser uma escolha pra mim, principalmente por entender a função e força política dessa escolha. O mesmo se dá com o excesso de recursos digitais e toda parafernália high-tech. Quando faço uma arte da sutileza, do silêncio, da delicadeza, pretendo contestar esta visão “espetaculosa” e pirotécnica de arte. Paralela a essa dimensão política, existe mesmo uma tarefa interminável, que é a da busca do auto-conhecimento, usando a metáfora do desgaste próprio das coisas na vivência; do constante refazer e da certeza dos desgastes futuros. Percebo que a necessidade recorrente de consertar, fazer a manutenção, cria uma confiança e esperança de que esse este fazer se torne tão orgânico que chegue a te dar prazer, o prazer de se perceber aprendendo e aceitando esta condição.

KF – O que não pode faltar na rotina e no ambiente de trabalho de João Lin?
JL – Travo uma luta diária com a organização no meu atelier e ainda nem empatei o jogo. Então, posso dizer que não pode faltar organização; não pode faltar um cheirinho de alfazema; não pode faltar muita luz, pois sou meio cego; não pode faltar música; não pode faltar internet; não pode faltar papel de vários tipos; e não pode faltar instigação para o trabalho e ideias pra gastar.

KF – Você e Christiano Mascaro são editores da revista Ragu, que reúne diferentes traços autorais. A revista começou pequena, um fanzine em Recife, e no sétimo número, em 2009, surgiu como um livro volumoso, com 33 colaboradores. Quantos exemplares de toda a história da revista, no total, estão circulando por aí? Como está a continuidade do projeto?
JL – A Ragu, editora independente, publicou oito edições da revista Ragu, duas edições da Domínio Público – Literatura em Quadrinhos (selo “Ragu Livro”), duas caixas “Ragu Cordel” (a primeira com 6 livretos e a segunda com 12 livretos) e a coleção “Olho de bolso” com 12 livretos (selo “Raguzine”) em parceria com a editora Livrinho de Papel Finíssimo. Circulam mais ou menos vinte mil exemplares, somando todas as tiragens, sem incluir a “Domínio público volume 1”, que foi aprovada no edital público do Ministério da Educação/PNBE, com uma tiragem de vinte mil exemplares para bibliotecas escolares. É importante falar de números, mas uma coisa que nos instiga na Ragu é que ela é um espaço de experimentação da linguagem, e nos permitir elaborar e disseminar a nossa concepção de quadrinhos. Nosso exercício na edição é o de compor com o conjunto de hqs e autores uma reflexão sobre a produção de quadrinhos independente. Claro que isso não é privilégio nosso, nós colaboramos, com nossa visão, para uma rede de publicações independentes de quadrinhos que também está publicando com essa mesma perspectiva. Incluir autores da Bolívia, Peru, Argentina, Cuba e Espanha deixa claro essa intenção de dar nossa colaboração nesse novo cenário dos quadrinhos no Brasil e especialmente na América do Sul, que tem uma produção independente muito rica e pulsante. Continuaremos publicando através da editora Ragu, mas nesse momento estamos mesmo refletindo sobre novos produtos. Queremos investir em novos formatos, não esquecendo das experiências que deram certo. Hoje, estamos pensando mais em desenvolver a sustentabilidade da Ragu. Este não foi nosso foco nesses onze anos, por isso as nossa publicações necessitaram na maioria das vezes de recursos públicos ou parcerias com outras editoras. Ainda não sabemos quando faremos a Ragu 8.

KF – O projeto Ragu Cordel usa um conceito bem ampliado de cordel. De onde veio essa ideia?
JL – O que nos interessa na Ragu Cordel é poder explorar o rico e amplo universo da poesia popular nordestina, e como o cordel é talvez a expressão mais popular dentre as outras facetas da nossa poesia, decidimos que a expressão “cordel” seria o grande guarda-chuva para apresentarmos a diversidade e riqueza desse universo. Não nos limitamos estritamente a forma (versificação, ritmo, categorias…) do cordel, mas fizemos o exercício de flexibilizar esses limites para criar diálogos com o universo dos quadrinhos e sua gramática particular. No final, gostamos do samba que deu.

KF – Indica aí: cinco livros entre os favoritos da estante de João Lin.
JL – Difícil escolher apenas cinco… mas vamos lá: O Herói de Mil Faces, de Joseph Campbell; A delicadeza, de Denilson Lopes; Epiléptico, de David B; Formas de Pensar o Desenho, de Edith Derdick; Haikais de Bashô – tradução de Olga Savary; Pequeno Dicionário de Percevejos, de Nelson de Oliveira; Contos fantásticos, de Guy de Maupassant; e Modernidade Líquida, de Zygmunt Bauman.

perturbado e perturbador / entrevista de investigação #4: flavio braga

Se você gosta de romances com bastante ação, sexo, bastidores do poder, referências históricas reais e uma dosezinha de adrenalina, e especialmente se você tem algum interesse na nossa condição política de América Latina, conheça logo A Cabeça de Hugo Chávez (Record, 2011).

Mas não comece a ler pelo prefácio de Luiz Costa Lima, senão perde a graça. Leia o prefácio só depois, depois de tudo… Aos prefácios, prefiro as capas, essas sim quase sempre potenciais boas prévias da narrativa.

A capa de A Cabeça antecipa o aspecto revolucionário do enredo, enquanto o texto de Costa Lima é tão exato em sua descrição que, ao se começar por ela, corre-se o risco de perder o sabor de um dos principais efeitos da narrativa: o labirinto criado pela polifonia de situações, personagens e épocas, desde Símon Bolívar (1810) até Hugo Chávez (2007).

Fruto de trinta anos de trabalho, este é o décimo oitavo livro do produtivo escritor, dramaturgo e cineasta Flávio Braga, que já tem pelo menos mais dois romances prontos – um deles, romance-reportagem, vai ser lançado ainda em 2012..!

Mas – e cadê o link para o blog de Braga? Não tem! Braga contraria toda a lógica da “impossibilidade de Pynchon” (tomo a expressão de outro autor, o ótimo Antônio Xerxenesky). Braga não bloga, não tuíta, não faz quaisquer esforços virtuais/sociais e, “pior”, tem menos de cem amigos no Facebook.

(“Pior seria se pior fosse”, diria o sábio pescador Luís Cuiúba, personagem de crônicas de João Ubaldo Ribeiro. Então, pior é: se um fã porventura digitar “Flavio Braga” no google ou no youtube, a lista inicial de vídeos prioriza hits de um cantor homônimo, ou da apresentadora Ana Maria Braga, e só lá pelas tantas, se for muitíssimo fã, é que descobre seu programa de entrevistas, o Tubotexto.)

Mas – e daí, se os livros de Braga são uma delícia de ler?

São quinze obras de ficção e três ensaios. A maioria foi lançada pela Record ou pela Best Seller, duas grandes editoras brasileiras. Boa parte é literatura erótica – dessa leva, ainda não li nada, confesso. Mas seus títulos estão em muitas livrarias (é raro não encontrar algo de Flávio Braga nas prateleiras das principais lojas), e um de seus livros, Sade em Sodoma, foi adaptado e virou peça de teatro estrelada por atriz global e preparada em um workshop de Gerald Thomas.

Produzir, produzir, produzir – eis o lema de Flávio Braga. O tempo que não perde na internet, ele passa escrevendo. E escreve muitas vezes ao lado da esposa, Regina Navarro Lins – sua parceira em um de seus temas literários preferidos: sexo e relacionamento.

Agora que o autor já está apresentado aos que, porventura, não o conheciam, permitam-me abordar um segundo aspecto pitoresco da trajetória de Braga: a aproximação com a obra do chileno Roberto Bolaño.

E o que Braga e Bolaño tem a ver, além de terem nascido no mesmo ano, 1953? Bem, arrisco: ambos começaram a publicar prosa já adultos (Braga, aos 46 anos de idade; Bolaño, especialmente a partir dos 43); ambos têm algo de beatniks (“Permaneceremos em Quina até a polícia chegar… / Podres de cansaço e Steinhegers, amanheceremos instáveis…“, trecho de poesia de Braga em homenagem a Porto Alegre).

E os dois encontraram formatos perturbadores para escrever ficção, e nela encaixar alguns de seus temas favoritos, entre eles poder, sexo, política.

Em o O Olhar Cingido (Record, 2010), romance imediatamente anterior ao Cabeça, o que fala é a ação objetiva dos personagens. Ali, os acontecimentos da trama são mais eloquentes do que fluxos de consciência e depoimentos em primeira pessoa. Diálogos em ritmo real, cenários bem descritos, tudo ajuda a fazer com que a temática dos bastidores da televisão popular brasileira (ou seja: do poder da elite econômica, política e da alta bandidagem sobre as imagens/as versões das histórias que chegam à maioria da população brasileira), tornam O Olhar Cingido um thriller de tirar o fôlego.

É desses livros de se levar consigo até para tomar banho, se for preciso, antes de chegar ao ponto final. E, quando o ponto final vem, você quer mais.

Bueno, vamos à entrevista.

Perturbei o sossego desse autor recluso em uma manhã de trabalho. Encontrei-o receptivo e de ótimo humor – duas de suas marcas pessoais, aliás, pelo pouco que sei. Depois, notei que ele já tinha estado no Programa do Jô, na TV Senado e outros espaços nobres ou não tão nobres da televisão brasileira.

Quer dizer: não se nega a falar de sua obra, só não fica fazendo isso o tempo todo. Precisa ser provocado.

Como eu tinha perguntas sobre dois livros, e não apenas um, nosso papo acabou se tornando um documento, ou um presente aos fãs de Flávio Braga – aqueles que, depois do ponto final, o procuram no Google e não o acham. E creio que seremos cada vez mais leitores nessa condição, já que um romance-reportagem está para chegar, O Olhar Cingido está roteirizado para cinema e A Cabeça de Hugo Chávez, por sua vez, deve ser lançado ainda este ano na Argentina e na Venezuela.

*

Katherine Funke – “A Cabeça de Hugo Chávez” contém mesmo aspectos autobiográficos, como informa a orelha? Quais? Seria a trajetória do personagem Felipe, autor de peça de teatro censurada pela ditadura e diretor do Pasquim em Porto Alegre?
Flavio Braga – É. O Felipe representa minhas lembranças dos anos 1970 e 1980. Anos duros uns, saborosos outros. Trabalhei como editor e como dramaturgo, também com cinema de curta-metragem. Ganhei festivais. O documentário do Gudin que aparece no livro foi meu segundo filme no Rio, aonde cheguei em 79. Em 83 voltei ao Rio Grande do Sul para dirigir o Pasquim e retornei definitivamente em 88.

KF – Você passou trinta anos reunindo elementos para esse livro. Foi uma pesquisa sistemática, focada e já com produção de texto simultânea, ou a produção do texto aconteceu em uma segunda etapa do trabalho?
FB – Entre 75 e 84 escrevi uma série de contos políticos que, reunidos, chamei de Politeama Alhambrês. Eram narrativas na primeira pessoa sobre questões latino-americanas. O Moacyr Scliar fez a apresentação. Mas não enviei a nenhuma editora, não sei bem o porquê. Alguns contos viraram curtas bem sucedidos. Conversa Limite participou de várias mostras internacionais e ganhou um festival de cinema que existia em Porto Alegre, na época. Mas o livro inteiro ficou na gaveta. No início dos anos 2000 fiquei amigo de um profissional de marketing que havia trabalhado com Hugo Chávez e ele me falou muito do processo eleitoral da Venezuela. Aquilo reacendeu o projeto iniciado décadas antes. Foi quando resolvi misturar história, memória e ficção. Devo acrescentar que a leitura do História, ficção, literatura de Luiz Costa Lima me ajudou a decidir por esse formato. Nessa obra brilhante, o professor Costa Lima demonstra como finas películas de memória e imaginação separam a existência real da ficcional.

KF – Do ponto de vista narrativo, você optou por narradores que contam tudo de seu ponto de vista, em primeira pessoa o tempo todo – tanto dos personagens ficcionais, quanto de Símon Bolivar, Che Guevara, Carlos Marighella, Leonel Brizola. Só não entrou na cabeça de Hugo Chávez, quero dizer, não há um capítulo narrado apenas por ele. Por quê?
FB – Todos os personagens históricos estão amparados em documentação pessoal ou em registros de especialistas da área, historiadores, jornalistas, memorialistas. Eu não criei nada, apenas dei forma narrativa. Eu não tinha nada do Chávez que ajudasse a montar aquele quebra-cabeças e que fosse documentado. Chávez tem a minha idade, ele é tão resultado do processo que descrevo quanto eu.

KF – “Os detetives selvagens”, de Roberto Bolaño, também é um romance em que depoimentos de diferentes personagens da trama vão construindo o enredo. Bolaño é uma de suas influências? Fale-nos um pouco mais delas…
FB – Pois é, Kathi, só conheci Bolaño agora, mas acho que eu e ele tivemos alguns processos semelhantes em nossa formação literária. Ele é de 1953 como eu e tem algumas obsessões como as minhas, política, sexo… Tenho pensado muito sobre isso sem chegar a conclusões. Eu li vários dele. O primeiro foi Os Detetives Selvagens, depois Noturno do Chile, Putas Assassinas e 2666. Li também um livro de ensaios, Entre ParéntesisNa verdade, quando comecei a ler Bolaño fiquei perturbado com certas semelhanças… Eu também pesquiso muito a direita radical, como ele. Se vida tiver, vou escrever um longo romance sobre a TFP (Tradição, Família e Propriedade).

KF – Sempre me admiro diante de autores produtivos como você. Tantos livros, mais o romance em co-autoria com Luis Daltro, e outros tantos específicos sobre o tema de sexo e relacionamento em co-autoria com sua mulher, Regina Navarro Lins. O que o impulsiona tanto para a atividade da escrita – e como você mantém o pique?
FB – Tenho dezoito títulos publicados, sendo quinze de ficção e três de ensaios. Nesse ano sai um romance-reportagem chamado Stalking, a patologia do apego. Eu comecei a publicar tarde, aos 46 anos. Antes apareceram apenas contos em revistas e jornais ou textos dramáticos. Escrevi mais de trinta peças e oito foram montadas. Mas não sei o que me impulsiona para a escrita. Sempre acreditei que a literatura era feita pelo nosso inconsciente. Mas o desenvolvimento da teoria literária, e volto novamente ao professor Costa Lima, trabalha com a idéia de uma segunda consciência que age em nosso inconsciente. Ou seja, os escritores hospedam uma segunda personalidade que, essa sim, cria. Isso explica porque autores com uma péssima relação com a realidade tenham produzido obras tão grandiosas e coerentes, como Louis Ferdinand Cèline, por exemplo. Ou Nelson Rodrigues.

KF – Ao mesmo tempo em que é muito produtivo, não encontramos facilmente textos/vídeos/ artigos em que você reflita sobre a própria produção. Você não é, também, como tantos escritores contemporâneos que vão compartilhando pensamentos via Twitter ou Facebook. Para o leitor interessado em saber mais sobre a cabeça de Flávio Braga, é preciso se aquietar e esperar. Qual o motivo desses silêncios? Pensa em fazer esse tipo de reflexão algum dia?
FB – Eu luto constantemente contra certa inclinação à solidão. Tenho um romance pronto chamado O pai só, que é sobre meu pai que sofria desse mal. Por outro lado, me confesso muito em meus livros. O fato de não ter uma vida social muito intensa aumenta minha produtividade. Consigo trabalhar até dez horas por dia em três turnos, o que em produção de texto é muito.

KF – “O olhar cingido” tem violência, sexo, política, algo de reality show e de novela.  É um livro de ritmo rápido, com muito diálogo e ação. Você já tinha essa meta ao iniciá-lo, ou o que lemos com tanta avidez é resultado de um aprimoramento constante? 
FB – Esse livro partiu de conversas que tive com uma amiga minha que pirou e descrevia relações imaginárias com nomes de famosos da TV. O personagem surgiu daí, mas criou vida própria. Trabalhei a linguagem de roteiro cinematográfico, que me pareceu adequada ao tema. Deve virar filme. Já está roteirizado para cinema.

KF – O título é uma boa sacada – a gente acha que lê “fingido”, e está escrito “cingido” – uma referência, suponho, às câmeras espiãs que o programa de TV do protagonista instala para investigar a vida de cidadãos comuns e famosos. É isso mesmo, ou há outra explicação? O título surgiu junto com a ideia do livro? Conte como foi. 
FB – É isso, mas esse título só surgiu muito tempo depois que escrevi o livro. O título de trabalho era O Inocente, mas já havia uma obra com esse nome.

KF – Quem são seus autores preferidos? Liste cinco títulos, um de cada, que você levaria para uma viagem de um mês a um país sem televisão. E, por favor, diga por quê…
FB – Sou um leitor sedento por Wladimir Nabokov. Li o que saiu em português. Eu levaria para a tal viagem Fogo Pálido. São cinco títulos… Bem, o segundo poderia ser Joseph Conrad e o seu No coração das trevas. De Virgínia Woolf eu levaria O Farol. Um brasileiro: São Bernardo, do Graciliano Ramos. O último pode ser A maçã no escuro, da Clarice Lispector. Por quê? São todos magníficos!!

para ser único e muitos ao mesmo tempo / entrevista de investigação #3: reginaldo pujol filho

A capa do investigado de hoje é premiada – a arte de Samir Machado de Machado recebeu as merecidas honras no Prêmio Açorianos de Literatura de 2011, da prefeitura de Porto Alegre.

Enquanto muitos designers talvez queiram ser Samir, sei lá, de minha parte eu admito: um dia ainda quero ser Reginaldo Pujol Filho.

É que este escritor gaúcho não tem medo de suas influências. Caça-as. Vai onde estiverem, infiltra-se no pensamento delas, tenta saber como funcionam suas máquinas de pensar. Domina-as. Deixa-se dominar. Para ser único, estuda os outros. Entra mesmo na cabeça deles, analisa os motores, desmonta as peças para descobrir outros reencaixes.

Tem é coragem, isso sim.

E eis que é um assunto pelo qual Pujol se tornou obcecado, entre uma cerveja e outra: que rosto é o meu, diante de tantos outros?, se pergunta, e uma voz interior o provoca, insistente: mas, peraí – como é o rosto do outros, diante do meu? O tema toma-lhe tanto tempo e espaço na cabeça que o moço foi obrigado a auto-conceder-se uma Bolsa Reginaldo Pujol Filho de Criação Literária.

Mandou-se para Lisboa, onde fica até o meio do ano neste curso de pós-graduação em Artes da Escrita da Universidade Nova de Lisboa. A grade de aulas faz qualquer escritor mais ou menos cabeçudo ficar com lágrima nos olhos de felicidade (& inveja & vontade de estar lá).

Lá, Pujol tem aulas com o aclamado Gonçalo M. Tavares, o que quer dizer ouvir do professor “estou a pensar com vocês” – o que quer dizer pensar junto com Gonçalo M. Tavares! Tem um ótimo artigo de Pujol publicado esta semana no site do Instituto Moreira Salles sobre o tema.

Pois. Corajoso, o moço, mesmo. Não só leu a maior parte da obra de Gonçalo M. Tavares, não só foi ter com ele pessoalmente, não só se dispôs a se expôr diretamente à máquina de pensar de uma de suas influências mais declaradas, como brincou de imitá-lo. Tavares é um dos dez homenageados de Quero Ser Reginaldo Pujol Filho (Não Editora, 2010), o segundo livro de Pujol.

Em Quero Ser, o autor gaúcho entra no cérebro de seus escritores favoritos – suas influências – e narra as histórias a partir desses outros olhares, rostos, estilos. Genial, hã? Em minha pouca, mas intensa experiência literária, nunca vi antes um livro dedicado apenas à arte de ser original copiando descaradamente.

Tem lá o “puês” do Veríssimo, o quixotismo de Cervantes, os mistérios de Mia Couto… E tem o humor único de Pujol, o estilo Pujol de fazer humor de várias formas. Como? Não sei descrever, peçam aos críticos, mas contém uma maluquice só (veja o vídeo do conto “Querido U” para ser rapidamente apresentado, caso não conheça ainda).

Já nas duas epígrafes de Quero Ser, o autor homenageia a arte da cópia repetida até o encontro da originalidade. “Imitei todos os estilos na esperança de descobrir a chave do segredo torturante da arte de escrever”, confessa ali Henry Miller. A citação de Pablo Picasso tem ainda mais força:

Você deveria constantemente tentar pintar como outra pessoa. Acontece que você não consegue! Você gostaria. Você tenta. Mas acaba ficando uma droga… e é exatamente neste momento em que você faz uma droga que você é você mesmo.

Não sou versada em todos os dez autores mais influentes para Pujol, é verdade, o que me impede uma explicação teórica literária mais profunda. De todo modo, críticos, estudiosos, literatos, já levaram este trabalho analítico a termo. Da minha parte, que só conheço cinco dos homenageados, noto que um dos grandes méritos do livro é que a gente nem sente se o esforço realizado por Pujol provocou suares angustiados no moço.

O escritor pode ter se diluído em dez em busca desse resultado, mas a gente não sofre nem um pouquinho. Ao contrário…

Há algumas semanas, procurei Pujol para uma entrevista sobre a experiência do livro. Apesar de estar em outras terras, outros ares, ele topou responder algumas perguntas entre uma tarde na livraria Pó dos Livros, outra cerveja e as horas mágicas na pós.

Humilde, o gaúcho que trata o leitor sempre como uma possibilidade remota – chamando-nos sempre de “Suposto” em seu blog pessoal – se revelou generoso e detalhista nas respostas. Dá até umas dicas de leitura.

Não sei ainda como é a máquina de pensar de Reginaldo Pujol Filho. Só sei que solta faísca.

*

Katherine Funke – Quero Ser Reginaldo Pujol Filho é um livro inteligente – uma proposta inédita na literatura brasileira, diga-se de passagem – mas sobretudo divertido. Era esse seu propósito desde o início? É assim que você vê a função da literatura, já que todos os contos de seu primeiro livro, O Azar do Personagem, também nos divertem?
Reginaldo Pujol Filho – Brigado pelo inteligente, inédito e divertido. Mas, assim, não acredito que literatura tenha uma função, sabe? Acho que literatura ou qualquer outra forma de arte, na nascente, na hora de fazer, não tem que ter função, objetivo, razão de ser. Por isso não acho que literatura tem que ser necessariamente divertida, engraçada ou bem humorada e gosto e leio muita coisa que não é por aí. Mas, na hora de fazer, a coisa muda de figura. Não sei se por algumas influências da vida, não sei se pelo meu jeito de olhar as coisas, não sei se porque me incomoda essa coisa da grande literatura sisuda (embora Cervantes, Machado e outros desmintam isso), digo, uma roupagem séria da grande literatura, não sei. Mas gosto de escrever com humor e sempre me pareceu um desafio fazer algo que eu ache bom e que seja ao mesmo tempo bem humorado. Desde os gregos que se leva mais a sério a tragédia, não é? Então tem muita gente fazendo tragédia, sendo sério e fazendo isso com gigantesca qualidade. Eu desde que comecei a escrever, pelo que me lembro, preferi escrever coisas com mais diversão, às vezes sarcasmo, às vezes ironia, seja nos temas, na forma ou na abordagem. Mas não é uma bandeira: literatura só com humor. É o que eu faço hoje, o que me desafia hoje, mas vai saber o que eu vou fazer daqui pra frente. Ficar sempre no mesmo, mesmo que seja humor, pode ser bem sem graça. Até o que eu estou escrevendo no momento me parece menos engraçado no sentido de humorístico e talvez seja mais, não sei se irônico, mas algo que não provoca risada. Talvez um sorriso.

KF – Só a verdade, se possível, por favor: você não teve mesmo nenhuma angústia da influência – e nenhum outro tipo de angústia – ao fazer o livro?
PF – Acho que eu tive todas. Os primeiros contos, enquanto a coisa não era tão evidente, talvez não tenham sido tão angustiantes porque foram contos que surgiram. Mas quando a coisa virou projeto e o projeto foi tomando jeito de livro, aí foi ficando dureza. Porque era assim: fechava um conto e pensava na listinha mental que eu tinha feito, tinha que escolher uma parada complica pra enfrentar. Meio Street Fighter, qual o próximo round? E aí, puxa, agora é eu e tu, Machado, vamos ver o que sai daqui? Cervantes, vem vamos fazer um conto? Mesmo o Verissimo que, a princípio eu tinha muito claro por onde queria pegar, o Analista de Bagé, texto que eu li quando tinha 11, 12 anos e tinha muito claro que era o trauma inicial dessa minha questão de identidade, foi muito complicado. Mas ao mesmo tempo sensacional. Porque eu reli todos os autores. Peguei livros preferidos – e no caso de alguns, até não lidos – e passei muito tempo fazendo uma leitura cuidadosa de cada um. Isso é muito bom. Só que ao mesmo tempo da pra falar de uma angústia da influência ao contrário. Porque em certo sentido a angústia da influência é querer e não conseguir escapar daquele “poeta-forte”, aquele totem que tá sempre sobre a página. E no meu caso, talvez um caso gravíssimo de angústia da influência, minha angústia era, mais ou menos, tentando ser o mais sincero possível (mas acho que sempre mentindo), era a angústia de ver onde é que aquele autor tava no meu texto e abusar daquilo, escancarar aquilo e ver o que acontecia. Então além da presença dos ídolos, tinha essa investigação que, muitas vezes, era bem angustiante.

KF – Mas qual foi o autor mais difícil de homenagear? Por quê?
PF – O mais difícil é difícil dizer. Acho o Gonçalo muito difícil porque tinha uma coisa muito pessoal em relação a um livro muito específico [O Senhor Henri], que é o primeiro livro que eu li dele e que nem tanta gente leu. Então escrevi sempre achando que só eu conseguiria ler aquele texto. O do Mia Couto, por ser algo muito diferente do que costumeiramente faço e porque era uma história esvoaçada, da qual eu só ia dar umas pistas, e por causa do jeito de escrever, misturando frases dele com palavras que eu inventei, pela pesquisa, acho que, no mínimo, foi o mais demorado. Cervantes e Machado, pelo respeito ou medo dos mais velhos e, com isso, quero dizer que tanto já se disse, já se fez, já se produziu em cima deles, o que fazer? Isso era complicado e, no caso do Machado, ainda tomei uma decisão: fugir dos olhos de ressaca e das ironias machadianas (o que muita gente me cobrou depois de ler o conto). Mas se eu fizesse isso, seria um Quero ser os outros, o que os outros leram. E eu lembro bem de, nas primeiras vezes que li Machado, até por ser em época de colégio, em que a minha sensibilidade e capacidade irônica não eram lá essas coisas, lembro de ter me divertido demais com o narrador dele. Então eu queria trabalhar isso. E o Veríssimo também. Pô, fazer humor com o melhor do humor é pedir pra tomar vaia. Mas tentei. O Calvino foi uma dificuldade diferente: acho que ele é tão múltiplo, tão variado, que eu tinha muitas ideias de contos pra esse conto, e não sabia por onde fazer, parecia que se eu escolhesse uma ia abrir mão do que eu queria de fato escrever, foi difícil isso também.

KF – Quando a gente vai poder ler as respostas de Altair Martins para seu conto em que um personagem o aprisiona e o obriga a escrever? Já está publicado em algum lugar? Essa iniciativa dele te surpreendeu?
PF – Ler eu não sei. Lembro de ter falado com alguém sobre publicar isso em algum lugar, mas não me lembro mais onde nem com quem. Tem um registro em vídeo, de uma leitura que eu e ele fizemos lá na Palavraria, em Porto Alegre. Não tem lá essas qualidades, inclusive porque os leitores (eu e ele) ríamos muito. Mas dá pra ter uma ideia. E se isso me surpreendeu? Demais. Quer dizer, pensando no cara legal que o Altair é, não deveria me surpreender, mas, dentro do contexto, não tinha como não. Eu tinha escrito o conto e umas duas, três pessoas, pra quem eu mostrei, tiveram a mesma reação “Pô, legal. Mas forte, pesado, hein? Será que o Altair não vai se ofender?”. Na primeira, não dei bola, na segunda fiquei assim, na terceira, quando disseram “ele tem família”, pensei em desistir daquele conto. Mas aí, antes disso, mandei pro Altair, expliquei o livro, a situação, e disse que, se ele achasse algo ofensivo, não publicava. E ele demorou, demorou, demorou pra responder. E eu já tinha certeza: pronto, tá puto comigo, não vai nem responder ou tá se acalmando. Vou fazer outro conto. Mas aí chega a resposta dele, dizendo que tinha adorado, que tava demais e que tinha feito algumas sugestões “em vermelho, no arquivo”. Abri o arquivo feliz da vida. Além de gostar do texto, ainda algumas sugestões. Comecei a ler megaconcentrado, prestando atenção, esperando conselhos sérios, literários e literatos, e aí leio um xingamento em vermelho. Depois outro. Depois “a tua mãe”. E logo o Altair, que gosta de vir com uns papos de que não sabe fazer humor.

KF – Que raios você está fazendo em Portugal? Escrever faz parte da rotina, assim como descobrir boas cervejas para seu próprio deleite, como lemos sedentos no Loira de Bigodes?
PF – Tô aqui aproveitando as benesses da bolsa Reginaldo Pujol Filho de criação e produção literária. Na verdade, estou vivendo um ano que eu sempre quis viver. Tô fazendo uma pós-graduação chamada Artes da Escrita, que, ao mesmo tempo em que me dá um pouco mais de substância teórica, me põe em aulas sobre conto, romance, teatro, cinema, com gente como o Gonçalo M. Tavares e o Mário de Carvalho. Mas, fora isso, faz parte da bolsa que eu me dei, além de estudar, escrever e ler, que eram coisas que no Brasil eu tinha que fazer no tempo que sobrava. Aqui não. Tenho trabalhado num livro e escrito alguma coisa de ensaio à luz do dia, durante a semana, como eu nunca tinha feito na minha vida. Ah, sim, e também tenho feito essa profunda e científica investigação no universo da cerveja lusitana e, por que não, europeia. Conteúdo com o qual abasteço o Loiras de Bigodes. Mas, basicamente é isso. E também tô, claro, sentindo de perto esse outro lado do oceano do português, que era uma coisa que já mexia comigo, ao ponto de eu fazer o Desacordo Ortográfico. Tem essa parte antropológico-linguística também.

KF – O que tem lido de melhor da literatura contemporânea?
PF – Bah, vamos lá. Uma coisa que é complicada é este recorte “contemporâneo”. Quando que começa e quando que acaba isso, né? E a outra complicação é tenho uma leitura bem irregular: não consumo desenfreadamente o cânone, nem as novidades. Tento abraçar tudo isso, mesmo sabendo que é impossível. Tá, mas vou tentar responder: o Gonçalo M. Tavares sem dúvida está nessa lista e, se eu for citar livros, putz, mas a série O Bairro, Uma Viagem à Índia, Aprender a Rezar na Era da Técnica, Matteo Perde o Emprego e por aí vai. Tem um mexicano, o Davi Toscana, que gosto muito do que li dele (Santa Maria do Circo e O Exército Luminoso). Li faz um tempo, mas vale registrar: os argentinos Rodrigo Fresan (Jardins de Kensington) e Alan Pauls (O Passado). O Coetzee, que, embora Nobel e de barba branca, não se acomoda e, bom, acho que isso faz ele mais contemporâneo que muito jovem. Johnatan Safran Foer, os poetas Diego Grando e Fabrício Corsaletti, os contos do Carrascoza, Maria Valéria Rezende, André Laurentino (que só lançou um, mas muito bom, livro), o Altair Martins. Bom, acho que tá bem assim, né?

delírios de um autor inventado / [entrevista de investigação #2: luiz bras]

A carta roubada pode estar em cima da escrivaninha, já avisava Edgar Allan Poe. Óbvio, visível, direto. Acredito que vale para tudo. O que está na cara pode se revelar o elemento mais difícil de se ver. A investigação de um livro, portanto, deve partir da capa.

Ahã, pois aí está a de “Paraíso Líquido, Luiz Bras” (Terracota, 2010), o mote dessa segunda entrevista de investigação, parte da série iniciada semana passada neste blog.

O título desse jeito, em um itálico invertido, as letras deitadas para a esquerda, rebeldes, à frente de uma ilustração de dar nó em cabeça de psicanalista…? Sensação de deja-vú. A capa se parece com a de Muitas Peles (Terracota, 2011), coletânea de ensaios onde Luiz Bras anuncia sua paixão pela ficção científica.

Mas Luiz Bras é só um nome desenhado na capa de um livro de dar nó em cabeça de psicanalista, ou alguém de carne e osso? Decido investigar mais. Afinal, assim como acontece em contos como “Iniciação”, de Caio Fernando Abreu – que tem bons toques de ficção científica –, as treze narrativas de Paraíso Líquido nos fazem desconfiar da existência factual de tudo: do lugar onde estamos, da nossa pele, da identidade do autor…

E eis que de repente a gente descobre que é um fato: esse tal de Luiz Bras é mesmo um autor inventado.

Opa! Muita gente já sabe, mas para mim foi uma novidade quando descobri, no meio do ano passado. Até então, eu achava que Bras era uma “pessoa de verdade”, um colaborador bacana do Jornal Rascunho, que havia compartilhado em sua coluna os pormenores da fabricação de seu romance Sozinho no Deserto Extremo (que vai sair logo – pela editora Prumo, o braço paulistano da Rocco).

Sabia também da sua faceta ensaísta e do talento para produzir livros infantis e juvenis. Desde 2004, ele lançou cinco obras do gênero infanto-juvenil individualmente, e mais outras quinze como co-autor (quatorze delas em parceira com Tereza Yamashita). Os Sons de Salvador (Callis, 2007), por exemplo, eu já tinha saboreado aqui na Bahia. Mas, na época, ainda achava que Bras era apenas Bras.

E só sabia que, além de ter escolhido nascer em Cobra Norato, ele colecionava zigurates. Mas tem mais: Luiz Bras é o pseudônimo, ou novo ânimo, de um outro escritor, doutor em Letras pela Usp, autor de um romance vencedor do Prêmio Casa de Las Américas 2011 (Poeira: demônios e maldições), entre vários outros prêmios. Quem inventou Bras já gostava, e muito, de ficção científica. Ah, tá explicado! Que figura, esse Nelson-Luiz-Bras-Oliveira…!

E como funciona isso de ter um heterônimo, um novo eu? Gastei dias e dias imaginando; trata-se de um passatempo saboroso. Uma vez conhecedora do Paraíso, decido acalmar meus próprios delírios aceitando o convite feito no posfácio do livro: escrever para o escritor.

Mando um email para o endereço indicado ao final do Paraíso Líquido – e ele me responde quase imediatamente. Existe, portanto? Ou é resposta automática? Seria um ciborgue? Humano, ou não, tem na sua genética algo de gentil, de atencioso. Diz que basta perguntar.

Bras manda brasa. Não perde tempo. Antecipa. Aceita o papo, mas alerta que Paraíso Líquido pode ser uma leitura imprópria para grávidas. Incrível: como sabe a meu respeito? Mandou um dos seus personagens me vigiar? Implantou nanocâmeras nas páginas do meu exemplar do Paraíso? Entrou no meu cérebro por meio das palavras e conhece meus pensamentos em tempo real? Seria ele um… pós-humano? Um ser onipresente? Nem só psicanalistas estão sujeitos ao nó na cabeça anunciado pela capa…

Respiro. Volto à Terra e retruco: não, Bras, não faz mal, ando lendo uns livros estranhos mesmo – Bolaño, Poe, Stigger, Eisner… O inventado ri do outro lado tela. E me pergunta o que vem depois: Stephen King?

Ri mais.

Ri? Eu não vi. Ouvi? Pode ter sido alucinação auditiva. Não sei. Ainda estou sob o impacto da leitura. Ainda tenho comigo uma sensação de não ter acordado de uma esfera onde o deja-vú convive com outros resquícios de memória muito apagados. Ou meu cérebro apresenta falhas no setor do hipocampo, ou esse autor inventado tem uma estratégia bem traçada para criar impacto na mente alheia…

Com vocês, nosso papo.

*

Katherine Funke – A expressão “paraíso líquido” é ótima para definir esse estado do viver mais no virtual, no imaginário impalpável, que na dita realidade concreta. Como surgiu esse conceito, para você? De alguma forma, a obra de Zygmunt Bauman a respeito da modernidade líquida influenciou o universo criado nos contos do livro?
Luiz Bras – O adjetivo “líquido” é um dos mais fascinantes. Qualquer substância em estado líquido, seja água ou ouro, move-se de maneira sinuosa, às vezes sub-reptícia. Quem não gosta de contemplar demoradamente o movimento fractal de um rio ou do oceano? Mas Zygmunt Bauman fala negativamente da liquidez da modernidade, do amor, de tudo, porque ele não enxerga com bons olhos essa situação em que tudo muda rapidamente sem jamais se solidificar. Sua visão do futuro global é bastante apocalíptica. Mesmo concordando com ele em certos pontos, a liquidez de meu livro é outra. É a liquidez hipnótica, que faz do movimento incessante uma forma de epifania estática, de paralisia extática, contemplativa.

KF – Um éden pós-humano pinga como colírio para dentro das retinas do leitor de “Paraíso líquido”, mas o livro também pode cair como um cisco no olho, um cisco bem concreto, sólido, incômodo, que faz piscar e duvidar do que é real e do que é inventado. É um paraíso, mas também é um paraíso formado por guerras, lutas interplanetárias e sobre-humanas por sobrevivência, e renascimentos em outros estados possíveis de existência. Depois de um tempo de imersão na leitura, o leitor tem de se beliscar para verificar se não é um clone dele mesmo, por exemplo. Sendo o autor Luiz Bras uma invenção, essa intenção já fazia parte do projeto literário criado junto com ele?
LB – Gostei da expressão “éden pós-humano”. Diferente do éden bíblico, o novo éden, apesar da alta tecnologia, será análogo ao mundo que conhecemos: um território do bem e do mal. Mas “Luiz Bras”, duas palavras presas no papel ou na tela, é apenas o nome literário que designa o novo escritor no qual me tornei. A maioria dos contos da coletânea fala de manipulação genética e tecnológica. De certo modo, são narrativas sobre o presente. Hoje os engenheiros e geneticistas estão pesquisando maneiras de evitar o envelhecimento. Estão cultivando em laboratório órgãos artificiais, por exemplo. Em breve a expectativa de vida de uma pessoa de classe média será de cento e cinqüenta anos. Os cientistas também estão procurando formas de preservar e potencializar o cérebro, por meio de drogas da inteligência e próteses neurológicas. O brasileiro Miguel Nicolelis e sua equipe prometem devolver os movimentos aos paraplégicos, por meio de uma interface cérebro-máquina. Tudo isso (os avanços da medicina e da tecnologia) é fascinante. Fico imaginando a série de dilemas, conflitos e efeitos colaterais que o desejo do ser humano de melhorar artificialmente o próprio ser humano irá desencadear em breve. Matéria-prima para a literatura não vai faltar no mundo pós-humano.

KF – Você gostaria que a obra fosse classificada como um livro de contos de ficção científica? Ou empunhar essa bandeira, digamos assim, pouco importa para Bras?
LB – Gosto que a obra seja classificada como um livro de contos de ficção científica. É verdade que essa classificação não teria muito importância, se a ficção científica não sofresse tanto preconceito no Brasil. As pessoas leem má ficção científica brasileira ou estrangeira e logo dizem: ficção científica não presta, é subliteratura. Porém quando elas leem má literatura policial ou infantojuvenil ou erótica ou experimental não dizem: literatura policial (ou infantojuvenil ou erótica ou experimental) não presta, é lixo. Minha militância é a favor da boa ficção científica brasileira e estrangeira. Minha bandeira é a da boa literatura, não importando o gênero.

KF – Dos treze contos, alguns deixam um gosto de continuidade possível, como “Nuvem de cães-cavalos”, em que o protagonista parte intacto para Budapeste, embora com algumas dúvidas a mais sobre si mesmo e a realidade ao seu redor. Todas as narrativas reunidas no livro já nasceram como contos, ou houve alguma incursão em outro gênero trabalhada ao ponto de virar conto? Como você lida com essas marcas de nascença das histórias?
LB – Todas as narrativas já nasceram como contos. Menos a mais pretensiosa das treze, justamente a última, “Paraíso líquido”. Antes de começar a escrever essa narrativa (minha predileta), ainda na época das anotações, dos resumos e rascunhos, eu imaginava que seria um romance curto. Mas logo que comecei a trabalhar no texto vi que a maluquice do assunto e da linguagem poderia perder a força se a narrativa se alongasse demais. Então decidi condensar toda a trama em pelo menos um terço do número de páginas. Não queria matar meus leitores de cansaço, como costuma fazer a maioria dos ficcionistas experimentais. Nas entrelinhas desse conto longo é possível ouvir, até mais do que a cacofonia da modernidade líquida de Bauman, ecos da palestra “Regras para o parque humano”, de Peter Sloterdijk. Em “Paraíso líquido” eu extrapolo poeticamente a preocupação filosófica de Sloterdijk com a bioengenharia e a reforma genética das características humanas.

KF – O que a temática futurista dos contos de “Paraíso líquido” tem a ver com o clima apocalíptico do seu próximo livro, “Sozinho no deserto extremo”? Por que você decidiu antecipar questões relativas a esse romance no jornal Rascunho?
LB – O próximo livro é um romance sobre o último homem na Terra, depois que toda a espécie humana desapareceu. É uma narrativa sobre a solidão concreta, não a solidão figurada do homem na multidão. Esse romance pertence a um ramo da ficção científica intitulado justamente “o último homem na Terra”. O artigo publicado no Rascunho [N.E.: publicado em três partes no jornal] surgiu de minhas anotações durante a escritura do livro. É uma tradição norte-americana que me agrada bastante: comentários do autor sobre a gênese de seus trabalhos. Vejo muito isso principalmente em antologias. Antes ou depois de cada conto, o autor inclui alguns saborosos parágrafos autobiográficos, discorrendo sobre as circunstâncias que deram origem ao conto. Estou planejando transformar o artigo do Rascunho no posfácio do romance.

“do avesso: uma estreia certeira” [entrevista de investigação #1: renato tardivo]

O primeiro livro publicado de um escritor deve pegar o leitor de vez para garantir audiência em um segundo, em um terceiro, em um quarto. Renato Tardivo faz isso já pela capa – toda austera, em bege, branco e preto, e simétrica (feita nos estúdios da Com-Arte, editora da Usp), mas estranhamente simpática. Letras vazadas, minúsculas, de borda tímida, quase invisível, revelam o nome do autor. O título também vem  humilde, sem caixa alta, de tamanho médio, mas em tipografia negritada, absoluta: “do avesso“. Hm! Simples, direto, intrigante. O número de páginas convida: 96. Só 96. Opa!, você pensa, e sem perceber já abre e devora a orelha:

do avesso. uma estreia certeira.

(… ) Qualquer jovem escritor, sobretudo os mais afoitos – todos! -, deseja espalhar seus textos por aí. A maioria, no entanto, se esquece de tomar o cuidado de maturá-los, engordando, assim, o pântano de histórias que nascem apressadas e, como um sopro, no momento seguinte, já desaparecem na babel de escritos superficiais que não cessam de se canibalizar. (…)

Com esta coletânea de contos breves, Renato Tardivo escapa da tentação dos estreantes impacientes e começa do lado certo: avesso à ansiedade. Avesso à pseudovanguarda, à experimentação ingênua, avesso ao registro vão da violência, ao oportunismo místico, à prosa desmetaforizada, avesso à transgressão mercantil e a outros modismos do mainstream. Tardivo vai devagar, ouvindo sua voz que, se precisa de mais desafios, já se destaca pelo timbre, pela coloração, pelo vigor.”

Assim não dá! Capa intrigante, orelha convincente, com toda manha argumentativa de João Anzanello Carrascoza (autor do belo O Volume do Silêncio, entre muitos outros). Hm, hm! Certo. Aí você lê. E descobre 19 contos curtos bem trabalhados, diversos, heterogêneos, mas unidos pelo forte conceito do “avesso”: o lado de dentro dos personagens, em histórias pouco banais – muito pelo contrário.

Os avessos são alcançados no meio de redemoinhos, aventuras, neuras e outras loucuras. Em foco, ou nem tanto, os contos abordam o que pensam ou que fazem pessoas dotadas de cabeças um tanto paranóicas. Ou neuróticas, ou automatizadas, ou, ou – ah, o autor é psicólogo, tá explicado! Mas poxa – e no entanto, o uso de outras vozes narrativas, além da primeira pessoa, revela a capacidade do escritor-analista de fazer-se sumir, desaparecer letra após letra, para dar lugar às bem construídas tramas.

Aí você entende que a capa não era só uma brincadeira de design.E que esse tal de Renato Tardivo também não está de brincadeira, não. É escritor mesmo, observador do avesso, investigador do profundo, e ao mesmo tempo notório intérprete das significâncias mais incríveis de cada marca superficial ou traço de identidade.

Pena que o livro seja tão bom de ler, e tão instigante – assim, termina em uma tarde…

Mas é isso o que mais me atrai: gosto cada vez mais de livros descomplicados, de leitura fluida, que me proporcionam essa vontade de não largá-los, e na tarde seguinte reler, e reler sempre, apenas pelo deleite de ter certeza de que aquele prazer foi mesmo real.

Por isso, decidi entrevistar alguns escritores contemporâneos que me provocaram essa magnífica experiência. Confira a seguir a primeira de uma série de algumas “entrevistas de investigação”, novidade aqui deste blog. Tardivo respondeu lá de São Paulo, por email. E já aproveitou a referência à estreia certeira para anunciar o próximo livro. Espertinho!

*

Katherine Funke – “Do Avesso” tem poucos contos, mas apenas dos bons. Na orelha, João Anzanello Carrascoza elogia o fato do livro ter surgido sem ansiedade e tratar do avesso dos personagens, e não da superfície. Dá a impressão de ser como um vinho maturado por anos e anos. Afinal, quanto tempo demorou para esses contos virarem livro? Como foi o processo de seleção e edição?
Renato Tardivo – Assim que entrei na faculdade de Psicologia comecei a escrever os primeiros textos de ficção. Era uma necessidade visceral. Sempre soube que precisa melhorar muito se desejasse me tornar um escritor realmente. E persisti. Nesse início, publicava os textos no jornal do Centro Acadêmico. Um pouco depois, criei o primeiro blog. Daí vieram menções em alguns concursos e comecei e me entusiasmar. Em 2004, cheguei a reunir um conjunto (sofrível, fui notar em seguida) de textos e procurei algumas editoras. As respostas não vieram e decidi aguardar – escrever sem pressa. Comecei o mestrado em Psicologia da Arte, tornei-me professor universitário, o consultório foi crescendo e seguia escrevendo. Por dois anos seguidos, submeti contos a uma revista editada pela Com-Arte Jr. (editora jr. da ECA -USP) chamada “Originais Reprovados”. Fui selecionado nas duas ocasiões. Estava terminando o mestrado (sobre a correspondência entre o romance “Lavoura arcaica”, de Raduan Nassar, e o filme homônimo, de Luiz Fernando Carvalho) quando recebi o convite de um dos editores da revista, Bruno Tenan, que estava se formando em editoração, para publicar um livro pela Com-Arte (editora laboratório da mesma faculdade), dirigida pelo Plínio Martins Filho. Eu reuni algumas coisas que julgava publicáveis, criei alguns contos novos, trabalhei em um ou outro mais antigo – e saiu o “Do avesso”, que, vale lembrar, recebeu ilustrações muito sensíveis de Adriana Bento. O texto mais antigo (um desses retrabalhados) é de 2004; o mais recente foi escrito pouco antes de fechar o conjunto, em 2009.

KF – Como foi a repercussão de “Do Avesso”? Você espera que fosse assim, ou achava que seria bem diferente? Alguma resenha trouxe novas luzes para seu próprio modo de compreender o que escreveu?
RT – A repercussão tem sido muito acima do que eu poderia esperar. Primeiro a orelha do Carrascoza. Daí uma leitura elogiosa de Rinaldo de Fernandes (juntamente com Carrascoza, na minha opinião, um dos melhores contistas em atividade no país). Então vieram algumas resenhas favoráveis; a primeira de Márcio Almeida, crítico que admiro. O livro tem circulado bastante – o que começou com um lançamento abarrotado de gente. O retorno, quer da crítica especializada, quer dos demais leitores, é sempre muito importante para mim, naquilo que trazem de luzes e trevas. Acho interessante, por exemplo, que um conto destacado por um leitor seja considerado um dos mais fracos para outro, e vice-versa. Em todo o caso, as resenhas foram importantes para que eu me reconhecesse de fato escritor. Senti que , de um modo ou de outro, o dever tinha sido cumprido. Estava no caminho – e era um caminho sem volta.

KF – Você já está preparando um segundo livro. Do que se trata e quando sai? Está ansioso agora, já que o segundo livro é sempre esperado como uma comprovação do talento demonstrado no primeiro – ou é imune a esse sentimento?
RT – Pois então, desde que finalizei o “Do avesso”, em meados de 2009, até o livro ficar pronto, no finzinho de 2010, praticamente não escrevi ficção. Certamente foi o maior jejum desde que começara a escrever. Com o livro pronto, mesmo antes do lançamento, veio uma vontade incontrolável de produzir. Estava maturando há alguns meses uma ideia. Ela foi tomando forma e acreditava que poderia realizá-la em um romance. Então trabalhei no texto, diariamente, por cerca de um, dois meses. Enquanto escrevia, fui me apercebendo de que não seria um romance mas um conto  – trabalho, na própria trama, essas questões em tom metalinguístico. Daí foram surgindo outros contos e, em praticamente um semestre, notei que já tinha um livro. Contudo, por mais que o processo tenha sido infinitamente mais rápido do que o livro de estreia, os contos desse segundo trabalho são, de modo geral, um pouco mais extensos e – alguns mais, outros menos – os textos, tomados um a um, levaram muito mais tempo para ficar prontos. Mas, enfim, resolvi submetê-lo à apreciação da 7 Letras, editora que privilegia novos autores, pensando que poderia levar muito tempo para receber uma resposta. O aceite veio bem mais cedo do que eu esperava. A coletânea de contos chama-se “Silente” (título do primeiro conto, aquele que pensava inicialmente ser um romance, aliás o mais longo do livro), terá um posfácio de Rinaldo de Fernandes e sai no fim de 2012. E, se no primeiro livro, há o mergulho sensível no avesso das coisas, talvez haja no livro novo certa preferência pela linguagem silenciosa – questões, aliás, que se complementam e que se devem substancialmente às minhas leituras do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty. Quanto às expectativas, claro que elas se fazem presentes. Até porque sou muito crítico em tudo o que faço. Mas, dessa vez, eu me sinto mais seguro em relação ao meu trabalho. Se “Silente” irá agradar ou não, não tenho como saber. Eu espero que sim.

KF – Seu trabalho como psicólogo funciona como usina criativa para o escritor? Você vai ser como Tchekov ou Scliar, mantendo a literatura como atividade paralela à área da saúde até o fim da vida, ou pretende se tornar “apenas artista”?
RT – As duas áreas, cada uma com sua especificidade, estabelecem entre si, pelo menos da forma com que as trabalho, muita correspondência. Trata-se de um modo análogo de ver/ler/interpretar o mundo. Embora eu lide com saúde mental, privilegio a Psicologia em sua dimensão humana, isto é, enquanto um ramo das ciências humanas. O professor e crítico Antônio Cândido escreveu um lindo ensaio chamado “O direito à literatura”. De modo geral, ele defende a tese do acesso à literatura enquanto uma faceta central dos direitos humanos, porque possibilita ao homem conhecer o seu mundo e, por conseguinte, a si próprio. Talvez a psicanálise lide com algo parecido – o trabalho criativo de resgate e construção da própria letra, do próprio texto. Lido diretamente com essas correspondências e m minha carreira acadêmica, situada entre a estética, a fenomenologia e a psicanálise. Meu próximo livro, aliás, será o trabalho a que me dediquei no mestrado: “Porvir que vem antes de tudo – literatura e cinema em ‘Lavoura arcaica’” (Ateliê Editorial/Fapesp), a ser lançado ainda no primeiro semestre de 2012. Enfim, diria que me sinto fazendo arte também na Psicologia, e que minha literatura privilegia questões psicológicas, como de resto acredito reunir essas facetas nos meus trabalhos como crítico. E, sim, por ora o projeto é seguir nessas atividades; não faria sentido ser de outro modo.

KF – “Curtiu, descurtiu – assim bate o coração do facebook.”, você twittou e blogou. Você pode não ser um escritor afoito, como diz o Carrascoza na orelha de “Do Avesso”, mas publica constantemente esse tipo de microconto em seu twitter, os reúne no blog, replica no seu mural do Facebook. Que importância você dá para esse amplo compartilhamento social de suas criações – sejam elas metalinguísticas ou não? Elas brotam já na telinha do Twiiter, ou você passa dias lapidando a joia?
RT – Acredite ou não, isso tudo é novidade para mim. Nunca fui muito afeito às redes sociais ou a aparelhos tecnológicos de última geração, nem sei utilizá-los direito. Desde que surgiu o projeto de “Do avesso”, praticamente parei com as postagens no blog. Quando o livro saiu, transformei o blog em um espaço para divulgá-lo. Daí, cedi primeiro ao Twitter; meses depois, pouco tempo atrás por sinal, criei um perfil no Facebook. A motivação primeira foi – e ainda é – divulgar o meu trabalho. Mais recentemente ainda, vieram os microcontos a que você se refere. Passei a brincar com essas novas formas de criar, e procuro fazê-lo com poesia e crítica. Que cenário é este em que a distância entre escritor e leitor mede 140 caracteres? Não sei o quanto essa empolgação vai durar; acredito inclusive que já esteja passando. Seja como for, no geral, as frases surgem prontas ou, pelo menos, as ideias aparecem quase prontas. O exercício não deixa de ser interessante, bem como a interação com os contatos – leitores, no caso. Mas não crio falsas expectativas: por mais que o escritor precise estar no mundo intensamente, seu trabalho é, em larga medida, solitário. Sou bastante reservado nas minhas criações e não acredito que essa profusão de microcontos mude muito isso.