exercícios de fé

hilda3na foto, hilda hilst

O ano começou com muitos exercícios de fé.

Fé no ofício de escrever.

Fé que hei de levar comigo todos os dias, especialmente neste ano, em que terminarei o romance “Viagens de Walter” durante residência artística (bolsa Funarte) no mágico Ponto de Cultura Biblioteca Barca dos Livros, em Florianópolis (SC).

Exercito o ofício com a mesma necessidade de quem respira. Alimento-a com café e sonho, com madrugadas insones, com jazz e silêncio, com sede de palavras novas. Mas a mudez às vezes me arrebata um dia inteiro. Às noites, explico aos demais da casa que estou cansada. Então escolho qualquer canto silencioso, abro o caderno e escrevo – de lanterna na mão para não acordar o neném.

Essa fé é assim: janeiro, sol alto, Salvador, Bahia, e ainda nenhuma praia no meu verão. Mas alguma poesia, sim, isto houve, em parte graças a uma oficina literária muito honesta com a poeta Angelica Freitas, que veio de Pelotas (RS) para Salvador (BA) especialmente para o projeto Escritas em Trânsito, da Funceb.

Angelica faz poesia de alta qualidade (reconhecidamente; a primeira edição de seu livro “Um útero é do tamanho de um punho“, lançada em outubro,já esgotou) e, ademais, é pessoa simples, simpática, interessada no ser humano com uma grandeza de espírito inominável.

Então, na oficina, foi super generosa conosco, loucos fechados dentro de uma sala na Biblioteca Pública dos Barris durante três tardes de janeiro, pleno verão na Bahia.

A poeta usou maneiras muito diretas, desprovidas de maquiagem e máscaras, para nos incentivar a “escrever sempre, escrever todos os dias”. Basicamente, ela nos fez ver um pouco o mundo através de suas lentes, ao nos instigar a observar e escrever (“em pé, mesmo”) a partir do que víamos: usar palavras de cartazes como pontos de partida, usar a própria vida como matéria-prima.

E me fez, particularmente, amar ainda mais Hilda Hilst e interessar-me por três outros poetas que ainda não conhecia: Cezar Aira, William Carlos Williams e Alexander Rios, este último autor de um verso-mantra, El tiempo vale oro.

Então ainda me perguntam se oficina literária vale a pena, se não era melhor ficar em casa escrevendo. Pode ser que para algumas almas demasiado seguras do que fazem (ou, do contrário, demasiado sensíveis às opiniões alheias), o melhor seja ficar em casa mesmo, pois em uma oficina é praticamente certo que você terá de ler o que escreveu em voz alta, e explicar-se e reconhecer-se certo ou equivocado nos caminhos que escolheu.

Para mim, valeu: em três tardes e muito papel jogado fora, fiz ao menos alguns versos dos quais gostei. No último dia, especialmente, quando saímos pelos corredores para coletar palavras escritas que nos servissem de ponto de partida.

Parei em frente a um quadro imenso (1,5m x 1,5m, ou mais, talvez) de uma grossa placa de madeira entalhada, próximo ao “elevado” (elevador, sem o ‘r’, como grafado na placa do terceiro andar), e vi a seguinte placa:

Cicatriz II. Obra doada pela artista Jaci Mattos por ocasião do bicentenário da Biblioteca Pública do Estado da Bahia.

E veio a poesia:

Doam-se cicatrizes

Então uma cicatriz pode ser doada?
– Sim, uma cicatriz pode ser doada.
Então quero doar umas três.

Quero grudá-las nas paredes
de algum lugar bicentenário:
mandá-las para a memória sagrada
de alguma instituição

Para ser apreciada como
uma obra da pesada,
uma grande obra
pensada para a multidão.

*

No fundo, a aula de Angelica foi esta: aprender a ver. E insistir na prática diária. Então sigo em meus exercícios de fé, dia após dia…

*
Notícia aos leitores das entrevistas de investigação. Em breve, novidades. Desta vez, com poetas.

Autor: katherinefunke

http://twitter.com/micronotas

4 comentários em “exercícios de fé”

  1. Como te falei na oficina. Gostei muito desse poema seu. Como ficou grande e expressiva, candente, a metáfora da cicatriz. Beijos. Esther

  2. Katherine,

    Boa noite. Foi com grande surpresa, alegria e emoção que li seu poema Doam-se cicatrizes. Achei-o lindo, e me tocou o fato de minha obra ter servido de inspiração para que você o escrevesse. Estou lisonjeada. Vou compartilhá-lo no Facebook, e quando eu conseguir restaurar meu site, que teve um pequeno problema com o Banco de Dados, gostaria de publicá-lo lá também. Espero que você não se importe.
    Obrigada por me brindar com a beleza de seus versos.
    Um grande abraço,
    Jaci Mattos.

    1. Bacana, Jaci. Por favor me mantenha informada. E que venham novas, novas interações. Abraços.

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